É o sol do meio-dia em plena Rio Branco e eu, homem antigo, daqueles que nem sempre usam o eMule para obter as músicas dos artistas prediletos, volto da tradicional loja de cedês da rua do Rosário.
Discos, mesmo compactos, hoje já se tornam obsoletos; contudo, eu quero o produto, a capa, as fotos, o encarte, tudo me interessa. Bons preços, uns de rock, um de blues, outros de jazz - diferente de tudo, apenas o de hip-hop português, de Portugal mesmo. A loja tem sempre boas ofertas, e ainda fica num endereço categório. Pela direita, terreno que sobrou de velho motel que ali desabou anos atrás, logo acima de um bar onde o Xuru adorava encher o pote, com drinques e drinques. Pela esquerda, Rosário 65, tradicional casa onde as garotas só dizem sim. Volta e meia vejo um amigo por aquelas bandas, cd na sacolinha é só comigo, todos os outros de mãos livres. Dizem que foram comprar pão, cortar o cabelo ou buscar o resultado da loteria. Eu acredito. E rio.
Braço à frente, chamo um táxi. O motorista, atencioso, pára imediatamente. Entro e peço o destino, rua do Senado. Muitos não gostam, acham que o caminho é curto e pode ser mais vantajoso ficar à espera de um apressado executivo que queira pagar sessenta reais por uma corrida até a Barra. Ele, não. É um senhor, vindo do Nordeste, talvez por volta de seus sessenta anos, ouvindo música clássica dentro do carro refrigerado. Eu gosto. Tem algum engano, de toda forma.
Em vez de tomar o caos de congestionamento pela rua da Carioca, o motorista toma iniciativa de seguir em frente, usando Almirante Barroso e imaginando usar Lavradio para chegar à Senado. Moro por ali há alguns anos, e gosto dessa coisa de uma única rua ter diversos nomes. Afinal, Conde de Bonfim, Haddock Lobo, Henrique Valadares, Relação, Chile e Almirante Barroso são seis nomenclaturas para a mesma super-via. Acho. Da Tijuca ao Centro, o que não falta é terra e gente homenageada. Chile é um pedacinho, Relação também. Tudo em nome da democracia.
Esquina de Chile com Lavradio, o sinal fecha. Na direita, IBGE e suas estatísticas. Noroeste, o veterano prédio da Tribuna da Imprensa, sobrado, quase centenário. Silencio, para dar vez ao taxista.
"O senhor sabe daquele prédio ali, da Tribuna? Olha, em 1950, eu era um menino, tinha nem trinta anos, menos até, e vivi uma história naquele lugar. Tinha uma moça, que era jornalista e casada com um policial. Uma vez, ela pegou uma corrida comigo, já que eu passava sempre aqui. Passou a ser minha cliente. Eu a levava até Piedade, Cascadura. Ela sempre me falava da casa, do trabalho, dos ciúmes que o marido sentia, e eu calado. Era mulher bonita, mas eu só espiava de esguelha, nada de me engraçar, nem tinha coragem naquele tempo. Levei a doutora muitas vezes em casa, tarde da noite, acho que ela ficava até o final cuidando das matérias, eram os tempos do Lacerda. Um dia, o policial ficou doente; fiz uma corrida para ela da Lavradio até o Hospital dos Servidores. Chegando lá, ela pediu que eu subisse com ela, para que o marido visse que não tinha nada de mais, e eu era somente o taxista - parece que ele morria de ciúmes do sujeito que levava a patroa todo dia em casa. Subimos, dei boa tarde ao moço, que nem era tão moço. Era, sim, um senhor, que devia ter uns quarenta, cinquenta anos, era velho para ela. Devia ser enciumado mesmo, porque mal balbuciou cumprimento. Terminou a visita, a dona pediu para eu levá-la até Piedade, era bom serviço. Aí é que a coisa entornou: quando chegamos lá, ela pediu para que eu entrasse na casa, bonita, grande, para tomar um café, tudo já de noite. Fiquei cabreiro, mas fui. Entrando, ela cumprimentou as crianças, a babá, pediu para a empregada que nos fizesse sanduíche e chocolate quente. Quando ia começar o lanche, botou toda a turma para dormir. Eu, trêmulo, naquela casa, com aquela mulher bonita, sem saber fazer as coisas direito, eu só sabia lidar com as quengas da Mimosa. Daí que a moça puxou a cadeira para perto de mim, começou a roçar a coxa e, quando vi, estava com a mão dentro da minha camisa e me beijando. Era uma mulher pra lá de bonita e de danada, fiquei amalucado, me levou pela mão para o quarto. Linda e safadinha. Quando fui embora, me deu um beijo na boca que até hoje eu sinto o gosto. Peguei o carro e voltei para Marechal Hermes. Tomei banho, deitei, quase não dormi, só pensava naqueles louros, naquela pele de seda, naqueles seios. No dia seguinte, me chamou de novo para a corrida. O marido, que ia ficar uma semana no hospital, acabou ficando meses - e eu ia para Piedade todo dia. Naqueles tempos, telefone era coisa difícil; um belo dia, a danada me ligou e pediu para não passar perto da Tribuna e nem de Piedade - a empregada, revoltada, foi ao hospital e contou para o corno o que estava acontecendo, sendo que o mesmo estava para ter alta. Quando desliguei, perdi dez quilos: imagina um policial armado atrás de mim. Nem pensei duas vezes: arrumei minha muda de roupa, paguei a despesa do quarto onde morava, deixei algumas coisas no quarto dum amigo e mudei para São Paulo. Fui trabalhar com frete e sumi do Rio, foi a única vez na vida em que deixei essa terra. Me escondi por um ano, deixei o buço crescer, o cabelo, imagine se o hômi vem atrás de mim. A saudade foi grande, mais uns três meses, não aguentei e voltei. Quando cheguei em Marechal, o amigo de volta me deu alguns recados, eu tremendo: quem será que poderia ter ligado? Policial, nenhum. A jornalista, umas três vezes. Retornei a ligação para o jornal. Acabei encontrando-a umas cinco, seis vezes, só para chamego, coisa da boa. O policial estava em casa, aposentado, ela disse que largava ele para ficar comigo. Achei que era loucura demais, mudei de Marechal, ela nunca mais me achou, eu conheci minha esposa e a vida seguiu. Tem cinquenta e sete anos, seu moço, isso foi em 1950, depois da tragédia do Maracanã."
Todo mundo tem suas histórias de amor, uns mais, outros bem mais. Por um instante, lembro das minhas, as distantes e as próximas. Noutro, assusto-me com a idade do taxista, e esse é o engano lá de cima: oitenta e três anos. Eu chutei uns sessenta. Ótima forma, no batente e com lucidez espetacular do contador de boas histórias. Se chegasse lá, aos oitenta, setenta mesmo, daquele jeito, seria feliz. Acho.
Chega a rua do Senado, 213, meu destino. A corrida não dá dez reais. O motorista merecia o dobro, só pela prosa, pela crônica que descreveu sobre o amor safadinho dos tempos de Vargas. Começou corrida às oito, ainda tem tarde e noite toda para trabalhar.
Eu agradeço e me despeço. O carro parte, decidido e sereno rumo à rua do Riachuelo.
Adentro o prédio antigo, de porta verde e alta.
Fico pensando no amor, na alcova, na mulher que não era só minha, tudo coisas que eu já vivi um dia.
O que será do amor do taxista? A bela mulher que hoje pode estar muito morta, mas que está tão viva naquele diálogo.
Lembro de coisas que nem deveria, mas me dão uma baita saudade. Acho.
Paulo-Roberto Andel, 19/10/2007
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