Sunday, June 15, 2014

o romântico blues dos miseráveis

as trilhas urbanas estão cheias de miseráveis como se fosse o sangue venoso em processo
a miséria da alma
a miséria da falsa generosidade
ou a apoteose da nossa hipocrisia empoeirada

os miseráveis não são exatamente os sem casa, comida ou futuro
estão engravatados nas grandes corporações
ou subornando, sonegando, fustigando indiferença
chacoalhando suas joias em tribunas de honra
onde a honra é tão pequena

os miseráveis
também moram nos sonhos
dos rebeldes sem causa do Jardim Botânico ou da Gávea
e dos revolucionários que ainda revolucionaram nada
- outros são Marighella - o inimigo dorme ao lado - a covardia tem casa e comida - o pecado é capital -
senhores miseráveis
em busca da perfeição que não existe
amores eternos entre duas estações - a contradição entre o verso e a vivência - queremos mais pecados

a miserável podre moralista no discurso enfeitiçada
com bacanais e outras putarias
o miserável que quebra igrejas como se fossem bancos
o miserável que chutou a santa!
vamos perseguir os ateus!
a miséria reside no fel do egoísmo, na truculência

e no calor inexato das contradições - hoje é domingo - vamos buscar o perdão de deus! - vamos viver nossos feriados lambendo vitrines, vomitando pastiches e fazendo da utopia nosso melhor entorpecente
- riquezas são diferentes!*
- a morte não causa mais espanto!*
os miseráveis poem culpa em futebol e carnaval
o óbvio é repetir as manchetes que alguém pagou para lucrar e alguém pagou para ler

os miseráveis não eram os índios mortos, os favelados estuprados, nem estudantes torturados pela ditadura que hoje faz-se pensamento liberal
os miseráveis não são os que esticam braços cansados em busca de esmola vil
os miseráveis não são os esmagados nos trens no fim do expediente de uma grande capital

quero cantar sobre os verdadeiros miseráveis: os que pensam ter descoberto os caminhos do mundo
ou que tenham as opiniões pasteurizadas sobre tudo - os que apontem as soluções certas porque nunca resolveram problemas - os miseráveis que dão de ombros porque não inventaram o mundo e não tem compromisso com isso -
os miseráveis que trocam de calçada ao avistar um pedinte
ou que desfraldam seus diplomas conseguido com o dinheiro dos pais - há quem chame de mérito

quero cantar contra os miseráveis que não declaram seu nojo de quem nasceu negro
ou pobre ou suburbano
caipira talvez
quero cantar para os que são trezentos, trezentos e cincoenta*
e não apenas os que se envaidecem diante do próprio bom senso - na verdade a ausência
os miseráveis que pertencem à academia brasileira de letras longe dos livros
e sopradas na tv a cabo
deus, buda, alá, os orixás, todos os que são alguém vão nos redimir:
enquanto isso somos gado off price sem a elegância do pasto
a esperança dos campos verdes
as ruas estão cheias de miseráveis
com violência, desfaçatez, sede de poder e ganância
coisas que armani não conserta

penso em um poeta que pediu a deus para que salvasse a américa
e isso queria dizer de nossas almas indigestas:
dê ouro preto a quem só vê miami em tom tão brega
ou candeia contra o showbiz
os miseráveis jamais entenderam o canto cínico de gilmour: "money! it's a hit!"
e nunca vão entender
o lado escuro da lua
o lado escuro
da lua que recita o blues deles, tão miseráveis
miseráveis
humanos feito eu

@pauloandel

*citações de "miséria", titãs, e "eu sou 300", mário de andrade

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