SÁBADO à noite e você escuta uma canção na televisão para passar o tempo, enquanto sua namorada não manda um beijo de boa noite pelo Whatsapp. Pensa em escrever fragmentos de um livro ou se deixa tomar pela preguiça generosa da noite descompromissada. Lá fora a chuva perdeu força, o frio permanece e nem todos se lembram de que debaixo da marquise nem todos são esfaqueadores enraivecidos. Nem todos, nem metade ou metade da metade. Numa cama quente de um quarto idem, você ainda pode sonhar. Mas já pensou no sujeito com o rosto na chuva e a pele sofrida sendo cortada pelo vento leve, mas gélido? Pois é, a rijeza da vida não bate somente na cabeça de assassinos numa noite fria de sábado. No coração do Centro do Rio são muitas dezenas de pessoas, algumas centenas na verdade, dormindo e vivendo o esplendor da miséria em ruas onde não passa ninguém nos fins de semana. Crianças de colo pretinhas, algumas maiores, senhores de idade, adultos sem força para viver. Gente à procura de um pedaço de pão, um gole de café, a chance de poder tomar um banho, uma vida onde o sono é o desmaio interrompido pelo horror de acordar e dar de frente com a realidade. A indignação contra a injustiça deve ser o primeiro passo de ações – a indignação pela indignação é apenas um suspiro. As ruas estão desertas por causa do frio. Estamos indignados em nossas confortáveis casas com luz, TV a cabo, computador, água, calor, lençóis limpos, amor safadinho, pensamentos que voam longe. Os miseráveis sofrem com seus dias de horror, sofrem com um ou outro bandido ao lado, com a chacina silenciosa do Estado, com a impossível chance de reverter uma desgraça, com a desagradável sensação de não serem humanos sentados no chão enquanto as respeitáveis pessoas de bem passam pela Rio Branco, Assembleia ou Presidente Antonio Carlos
– Cinelândia também, Carioca, vários lugares. A internet voa longe e você está aqui por causa dela. Somos primitivos demais quando nossa indiferença se limita a esta bela tela. O que vai ser de nós até a próxima manchete fraudulenta, a verdade editada, a democracia ditatorial, a vida de alguns que vale a vida de uma multidão? Somos primitivos demais e está frio lá fora. Frio demais. Uma das crianças pretinhas chora com o frio e nunca mais vai se esquecer da vida na rua. Se ela crescer e der tudo errado, mandamos prender. Se der certo para o belo sistema vigente, ela morre antes. Não somos racistas: o que acontece nas penitenciárias, casas de infratores, delegacias, comunidades, hospitais da rede pública, bairros humildes e outros mais são tudo “coincidência”. A vida escorre. Pena de morte, mortes sem pena. Alguém vai sofrer logo mais. Na verdade, agora. Agora. Agora. Já.
Publicado originalmente em "Cenas do Centro do Rio", Vilarejo Metaeditora, 2017, página 83.
No comments:
Post a Comment