Reprise 10/12/2022
NOTA: esta crônica tem várias versões, todas verdadeiras. Nem tudo é mentira: estávamos muitolokos. Hoje Cássia Eller faria 60 anos e faz uma falta filhadapoota, mas ao mesmo tempo sua grande voz não para de ecoar. Viva Cássia!
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Numa noite de quinta-feira de novembro de 1998, eu estava com meu amigo Bolinha em Copacabana. Resolvemos beber chopes. Estávamos ferrados emocionalmente mas juntos, um dando força para o outro. Bem ferrados mesmo. Bom, agora estou bem pior mas tudo bem.
Chegamos tarde ao Sindicato do Chope no Posto Seis. Pedimos frango à passarinho, caldo de feijão e chopes. Já passava de meia noite e tínhamos trabalho cedo. Não bebemos de cair, éramos quase responsáveis, mas dava para rolar umas tropeçadas e até se machucar no calçadão. Mentira: bebemos pacarai. Comemos também, mas a doideira prevaleceu.
Uma da manhã, bar vazio, o garçom esperando que pedíssemos a conta, eu pedi foi uma empolgante caipirinha - beber liberta! -, e subitamente chega ao bar ninguém menos do que Cássia Eller, acompanhada de dois brous. Enchi meu peito de emoção e o Bolinha logo inflou a ideia: "Porra, cara, Cássia é foda demais, você tem que ir lá falar com ela!". E a vergonha? E o risco do toco? A gente nunca sabe. Eu sempre tenho vergonha. Já entrevistei Gilberto Gil e Maria Bethânia, mas continuo com vergonha.
O Bolinha sussurrando que nem o Diabo: "Cara, quando ela for no banheiro, você vai em seguida e cerca ela no corredor". Os dois banheiros eram um de frente para o outro. Mas eu já tinha ido umas cinco vezes de tantos drinques. Oito, talvez.
Um chope, dois, três, cinco, oito deliciosos, eu já tinha aliviado toda a tristeza daquele dia mas o destino foi implacável: Cássia se levantou, Bolinha me deu um cutucão, ela foi para o banheiro, contei até três, fiz o mesmo mas o tanque já estava vazio. Então fiquei lá dentro num silêncio típico de minhas noites de ronda escoteira, ouvindo os ventos, as folhas e o horizonte livre no campo, esperando que, no outro compartimento, surgisse um som de torneira aberta - sinal de que ela estava prestes a sair. E aí eu a abordaria.
Segundos, segundos. Tchoook.
[A água da torneira batendo no dorso da pia.
Dou de cara com Cássia Eller. Ela olha e quase ri. Eu paro e digo "Cássia...". Ela para, eu me aproximo e aí um dos pares de olhos mais expressivos da música brasileira se arregalou: provavelmente ela pensou que eu a agarraria, mas não foi nada disso, mermão. Não. Eu coloquei minhas mãos nos ombros dela, peguei firme e disse "Tu é fodaça pracarai. Eu cantei muito lá na UERJ quando você fez um show no Teatrão. Meu amigo Rubens estava lá mas não desceu quando você sorteou a caixa de Brahma (patrocinadora do evento) - ficou com vergonha de ser a bicha da letra. Só sei que tu é fodaça. Teu show na Apoteose foi demais, você, Bob Dylan e Rolling Stones. Caceta!".
Nós dois, cara a cara, olho no olho, a poderosa rockstar encolhidinha com medo de um gigante anônimo e gentil.
Ela, pequenininha, já calma quando tirei as mãos de seus ombros, olhões quase arregalados. "Pô, cara, brigado pela força. Valeu mesmo.".
Cássia realmente se assustou com a possibilidade de um beijo roubado, mas a um verdadeiro cavalheiro bêbado só interessam as causas amorosamente perdidas. Algo que a gente encontra parecido na literatura de Borges.
Mais de vinte anos depois de sua morte, ela continua com presença avassaladora na música do Brasil.
@pauloandel
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