Thursday, November 21, 2024

A garota

Lembrei de uma colega da faculdade. Não fomos íntimos, mas convivemos uns quatro anos. Sempre foi uma simpatia comigo, um doce. Nenhuma conversa profunda, algumas amenidades. Ela devia ficar desconcertada porque eu era roqueiro, eu era Black Sabbath e ela era Paulinho Moska. Eu também ouvia bossa nova, mas ela não sabia. Era séria, séria mas tinha um sorriso bonito. Ontem lembrei dela. Morreu há muitos anos, teve uma doença terrível. Será que depois de tantos anos e anos, ela está em algum lugar e soube que eu pensei nela? Podíamos ter conversado mais sobre qualquer assunto. Podíamos ter aprendido mais coisas. Eu lembrei dela. Será que vinte anos depois da minha norte alguém se lembrará de mim? Não sei, mas eu lembrei de minha colega. Falei com um amigo em comum a respeito dela, estudamos todos juntos. Ela era um doce. Devíamos ter falado mais. Eu era garoto, tinha pouco mais de vinte anos. Ela faz falta. Era uma boa pessoa, veio de grande luta contra a pobreza, se esforçou para chegar à universidade. Depois fez um bom concurso profissional. Acima de tudo era uma boa pessoa, tinha o mais importante de tudo. Ela faz falta. Se era doce para mim, distante, imagine para seus próximos. Pensei muito nela, será coisa de religião? Gostaria que ela estivesse num bom lugar, mas não creio. Gostaria que ela estivesse aqui para lhe dar um abraço e um beijo, também dizer obrigado por todas as vezes que foi gentil e simpática comigo - gentileza e simpatia, bens tão escassos nesta terra de sofrimento e ingratidão. Queria que ela estivesse bem. Tão jovem, tão garota, lutou tanto e tudo o que sobrou foi esta pequena lembrança: há justiça nisso? Eu era Black Sabbath mas escrevia poemas de amor e as garotas adoravam. Eu também era bossa nova e cool jazz. Eu era Bill Evans e não sabia. Queria acreditar que ela está nem. Lembro bem de seu sorriso e doçura. Não pude falar nada, porque nem maturidade tinha: eu era um garoto popular louco para conseguir um emprego e ajudar minha família - ela também acabou. Mas não é tristeza e talvez não seja só saudade: era para dizer que eu admirava uma garota que conheci pouco e lamento muito que ela não esteja por aqui. 

@p.r.andel

Wednesday, November 20, 2024

O silêncio dos escroques

Os acontecimentos das últimas horas, revelando claramente o plano de execução de Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes são gravíssimos, mas não surpreendentes. Quem nunca imaginou que pessoas que debochavam da morte de milhares de pessoas por COVID poderiam até praticar crimes?

Agora, tão nojento quanto é constatar que o suor de milhões de brasileiros paga expressivos soldos a quem sempre está do lado contrário dos interesses do povo. Tem sido assim desde sempre. Muitos cidadãos que têm mais de 50 ou 60 anos de idade já ouviram falar de amigos com tios, avôs ou equivalentes que "trabalhavam na Petrobras" na época da ditadura assumida (nenhum deles sob concurso). E basta lembrar de momentos como na OAB e no Riocentro para se refletir a respeito. 

O golpe contra Dilma em 2016 já vinha desde 2013, sendo consolidado três anos depois. À época, não faltou quem justificasse o golpe com argumentação rasteira. Outros preferiam silenciar. E de 2016 a 2022 o Brasil viveu o pão amassado e chutado pelo diabo. Acabou a mamata, exceto para os mamateiros de sempre. O cinismo de parte do eleitorado era tamanho que naturalizaram negociatas de imóveis com dinheiro em espécie, a única loja de chocolates no mundo que não lucrava na Páscoa, o maior vendedor de carros usados no planeta (negócios fechados a cada 20 segundos) e outras barbaridades como o genocídio na Covid. E a mesma cara de paisagem está em voga com o silêncio sobre o plano de aniquilação de pessoas para promover (mais) um golpe de estado.

Escroques. 

Escroques. 

Escroques. 

FDPS.

Golpistas. 

Traidores da pátria. 

Saturday, November 16, 2024

G20 x [ 2(4 - 6) + 3(8 - 3)]

Para que tanto ódio? Ganância? Arrogância? Tudo é inútil. Quinze dias depois de um enterro, somente as pessoas muito próximas ainda pensam no morto. Para que tanto desamor? Para que tantos discursos que não se sustentam na prática? Para que tanta hipocrisia? 

Nascemos, crescemos e deveríamos ser gregários, mas somos escrotos. Mesquinhos. E muito hipócritas. Agora mesmo temos um grande evento no Rio, com dezenas de líderes mundiais, onde justamente vai se discutir sobre mudanças que deveríamos ter feito há vinte ou trinta anos. A 50 metros de todos os pontos de concentração do G20 há alguém passando fome e pedindo esmolas. O Rio tem milhões de pobres, falidos e foodidos mas todo mundo finge que nada está acontecendo. E assim empurramos com peito e barriga, até quando Deus quiser e o sistema circulatório colaborar. 

A água, o clima, a atmosfera, a comida, o estudo, a segurança, o conforto... Tudo isso é importante não apenas para cada um de nós, mas para todos, para o próximo. Acontece que, de uns tempos para cá, o smartphone é mais amigo do homem do que o próprio homem, então compreendemos toda essa pomba. 

Crianças chorando de fome, crianças explodidas na guerra, crianças estupradas e tanta gente fingindo cara de paisagem. 

Tanta gente jovem adulta que não tem direito de almoçar e sonha com um bife. São milhões e milhões. Não existe democracia de verdade enquanto as pessoas não podem comer, ter uma roupa, um lugar mínimo para morar. Não existe democracia enquanto trabalhadores morrem com balas na cabeça. 

As discussões são importantes, mas discursos sem prática levam a lugar nenhum. Não basta bradar contra a fome e depois fingir que está tudo bem, porque não está. Não está, nem estará. Não adianta bradar contra a violência e praticar o ódio ostensivo. Falamos tanto de roubalheira... Será que somos tão perfeitos assim? Não!

Precisamos de paz. De verdade. 

@pauloandel

Wednesday, November 13, 2024

Fluminense

Tenho saudades do meu time. Ele não era apenas um time, mas um ambiente, uma atmosfera. Tanto fazia se a arquibancada estava lindamente lotada debaixo de uma nuvem continental de pó de arroz, tanto fazia: podia ser também uma quarta-feira vazia, chuvosa, com alguns bandeirões e a esperança numa vitória, mesmo que não significasse um título. Meu time era ter meu pai me puxando pela mão e me dando cachorro quente; era a sala das torcidas onde você espiava a dança das cores embalada pelo samba autêntico. Tenho saudades do meu time, todo de branco em campo, cheio de valentes jogadores negros, alimentando os sonhos dos garotos com o jogo de bola que, mesmo tão contaminado por ora, mantém seu fascínio através dos tempos. Eu tenho saudades de quando éramos quase todos anônimos e ninguém precisava se promover com polêmicas medíocres, porque o que realmente importava era o time - e não a patética vaidade do senhor dono da razão. Saudades de quando tudo era mais simples e humilde - o Maracanã era povo de verdade. Há quarenta anos, eu deitava sozinho no chão da geral e o céu me parecia uma grande tela circular: as nuvens lentamente navegando pelo céu, uma ou outra estrela sobressaindo e uma réstia de infinito que só revi anos depois nas telas circulares dos shows do Pink Floyd. Eu tenho saudades dos abraços sinceros na arquibancada, saudades dos maravilhosos vendedores de refrigerantes com seus capacetes, tanques de refresco nas costas, roupas brancas e visual de astronautas. Saudades das grandes bandeiras. Saudades dos grandes placares eletrônicos com suas lâmpadas e o nosso escudo estampado nelas quando o time subia a escada do túnel à esquerda para entrar em campo - dezenas de garotinhos corriam loucamente pelo gramado, sonhando em estarem ali um dia como protagonistas. Está quase tudo morto pelo tempo, pois ele sempre vence, mas existe um refúgio permanente: o das minhas lembranças, o da saudade. 

[no fim, tudo é desimportante 


Glauber já!

A gente precisava do Glauber agora, gritando, agitando, o escambau. Atentado em Brasília às vésperas do G20, o fascismo esticando a corda até onde puder, as pessoas alienadas e perto do feriado a mentira vai triunfar. É um alívio ter meu amigo Bigode nas conversas diurnas de bar, ufa, e aprender um pouco com ele sobre a genialidade de Nelson Pereira dos Santos. Aqueles caras geniais que nos anos 1950 e 1960 viraram a arte do Brasil de cabeça para baixo, colocando nas telas de cinema o Brasil real e, por isso mesmo, nem sempre agradável e leve. A gente precisava do Glauber nem que fosse no programa de TV por um tempo, entrevistando, debochando e até rindo, mas quebrando a p0rr@ toda de verdade. O eterno silêncio de Glauber é o nosso silêncio de torpor diante das atrocidades que testemunhamos diariamente, como se tudo fosse normal. Não, não é. O Brasil está sendo trucidado dia e noite. O Brasil precisa se levantar. Precisa. 

@pauloandel

Sunday, November 03, 2024

Vi

Vi, sim

Tenho visto quase tudo nessa estrada longa 

Que não sei onde dará 

Eu vi a dor, o choro

As mãos esmolando

Eu vi o desespero 

Vi a indiferença, o dar de ombros, o nada a ver com tudo

Vi a solidão, a melancolia e o desprezo

Mas também pequenas esmolas de felicidade

[Esta cidade tudo oferece para você que tem dinheiro 

Eu vi mortes horríveis por balas perdidas

fornos de microondas

e esquartejamentos

Vi pessoas famintas nas portas de mercados e 

em filas de hospitais 

Eu vi amores morrendo e nascendo, amores abortados, corações solitários e corpos desejosos

E vi o êxtase dos abraços no Maracanã 

As vozes da alegria na Quinta da Boa Vista 

Vi uma criança com seu balãozinho, outra com sua tampinha de garrafa e a terceira admirando um avião 

Que aqui não pousará 

Eu vi vítimas de incêndios e grandes acidentes

Mas também agradáveis companhias em ônibus de viagem 

Vi o fogo de conselho em seus momentos derradeiros e alvoradas esperançosas

O livro dos dias com trabalhadores indo e vindo 

Vi notícias populares, trágicas, quase felizes

No coração da Central 

Às seis da tarde


E ainda não posso parar

Não tenho direitos 

Eu virei uma alma penada de meu 

próprio cotidiano 

Mas ainda tenho o que dizer

Oh, lindos litorais e pontes arrebatadoras, vocês ficam para trás 

Gatas alucinantes e bares de mil conversas, também 

Eu vi o céu e o inferno no mesmo tecido da toalha que me enxuga

E rancores indiscretos

Escrevi vinte mil páginas para dizer qualquer coisa, mas não tenho mais paz - nunca tive - é uma busca inglória

Eu vi minha vida escorrendo em vão 

Mas ainda tenho algo 

a dizer - quem sabe várias coisas desimportantes?

E só preciso de uma mísera esmolinha de felicidade

Uma simplória mudança pela felicidade 

em moedinhas humildes e sem brilho 

Uma moedinha, uma república 


@p.r.andel

Friday, November 01, 2024

Sex, Sprite e Vila Isabel

CAPELINHA, PARMÊ E MICHELUCCIO 

NAQUELE TEMPO éramos duros mas nos divertíamos. No começo da 28 de setembro havia aberto a filial carioca da pizzaria Micheluccio, que começamos a frequentar e infelizmente durou pouco tempo - a pizza era maravilhosa. Depois descobrimos a Parmê e virou uma febre de bater ponto regularmente.

À noite o negócio era o Capelinha, frequentado no passado por ninguém menos do que Noel Rosa. Uma vez, Martinho entrou no bar - tocadaço - e nos disse "Boa noite, rapaziadaaaaa". E foi pro banheiro. O almoço também era excelente. 

Comecei em Vila Isabel em 1990, por falta de dinheiro. Ficava apertado ir e voltar todo dia duas vezes para as aulas, então algumas vezes eu ficava direto até à noite, das 7 às 21:30h. O almoço, baratinho, num restaurante da rua Sousa Franco - você pagava um fixo e comia o quanto quisesse - tinha que comer muito para aguentar até à noite. Depois caminhávamos, normalmente por Vila Isabel ou Grajaú, até a Tijuca mesmo. Ou voltávamos para a UERJ. Em sextas notívagas com nossas crushs, saíamos à meia noite da Praça Sete, caminhando as pé em bando até a São Francisco Xavier, na porta do campus. Colocávamos as garotas no ônibus e voltávamos para casa. Quase ninguém tinha carro, mas começamos a receber tickets refeição e era o que bastava. Foi de 1990 até mais ou menos 1994, aí nos separamos por causa do trabalho e porque a vida é desse jeito. 

Às vezes sozinho à tarde, eu ouvia o disco novo de João Gilberto no walkman, além do programa de jazz do Jô Soares, que foi um professor musical pra mim. 

Nem de longe dava para pensar que nosso playground do início da vida adulta se transformaria numa praça de guerra diária, com tiroteio para todos os lados.

CINDY

Hum, sonhei com a Cindy. De novo. É uma história muito louca, porque nunca nos beijamos, não por falta de vontade, mas por loucura mesmo - acho que era. Eu a vi uma vez na faculdade e fiquei louco por ela, mas só nos conhecemos um ano depois e mantivemos alguns anos de contato, com raríssimos encontros. Acontece que ela não era apenas linda, mas extremamente sexy, então me dava um tesão enorme, enlouquecedor. Foi a garota que eu mais vezes transei em sonho na vida, não sei ao certo sobre a recíproca, mas creio que tenha tido prazeres pensando em mim. Então não dormi muito, mas foi o suficiente para transar muito em sonho e, quando você acorda, vê que nada daquilo é real mas é impressionantemente verdadeiro - você sente nos lábios o gosto do prazer cumprido, só que imaginário. Acho que devíamos ter vivido muitas coisas, ela não quis, agora é tarde demais. Ou não. Tudo bem. Eu penso em Cindy, eu tenho boas sensações por causa dela. Não importa se não é a vida real: viver é melhor que sonhar, mas não se pode vencer todas as batalhas. O tesão permanece. 

SPRITE

Ainda bêbado de êxtase por causa de Cindy, acordei às cinco e meia, tomei banho e desci para o posto am/pm da outra esquina. Havia uma super promoção: latas de refrigerantes a dois reais, litro e meio de mate a cinco, pão de queijo a cinco. Gastei vinte reais e fui muito feliz. 

Estou cansado. Preciso de um cochilo. Hoje estou de meia folga, vou encontrar amigos geniais dos tempos da escola e, depois de meses, voltarei ao Maracanã. Ainda que não seja mais o velho estádio que frequentei, ele ainda tem um significado forte. Tem o Fluminense, tem a história, meus tempos de faculdade ali do lado, grandes cenas de 1988 a 1996. 

Daqui a dezessete horas, terá passado mais um dia. Eu terei uma lata gelada de Sprite e já saberei o foi feito do Flu. Virá o final de semana, daqueles que a gente fica esmolando moedinhas de felicidade e pequenos momentos divertidos. Se é o que temos, que assim seja. Tomara que seja um dia bom, só um pouquinho, no meio dessa terra cheia de sofrimento, guerras, genocídios e rancor. 

@p.r.andel