Sunday, October 27, 2024
Brasil, república dos biscoitos
Thursday, October 24, 2024
Turn It on again
1
Silêncios dizem muita coisa. Falam quase tudo. E alto.
2
O que o outro pensa em silêncio? Às vezes desconfiamos. Muitas vezes não perguntamos por medo ou hipocrisia. Noutras, por conveniência.
3
Sobre o amor que mora em silêncios. O desejo, o sexo, o tesão explícito. Águas bravias represadas, supõe-se.
4
O tesão guardado em silêncio é uma derrota.
5
E você olhar aquela mulher, desejá-la ardentemente desde sempre, carregar em si todas as potências sexuais e nada fluir. É um desperdício.
6
Ah, o silêncio que carrega tantas coisas. O desejo, a saudade, também a melancolia pela ingratidão, são muitas cargas.
7
Aquela linda mulher deitada nua em berço esplêndido, catedral de carne, pátria de todas as pautas de prazer.
Wednesday, October 23, 2024
Quando o poeta se vai
As palavras me interessam desde bem pequeno. Os nomes, os nomes originais. Quando ouvi o nome de Antonio Cícero, nunca mais esqueci. Primeiro, ouvi sua poesia nas grandes letras. Depois, nos livros. Para completar, AC era irmão de Marina, que o nosso mundo de Copacabana amava de paixão - ela passava pelo shopping depois de uma peça de teatro - de camiseta e jeans -, sorria e ficávamos encantados.
Muitas vezes vi Antonio Cícero nas ruas e deveria tê-lo cumprimentando, mas não o fiz. Ele estava sempre na região dos sebos. Sei lá, fiquei com vergonha, não queria interromper seu flanar, fiz a mesma besteira com João Carlos Assis Brasil, que vivia pela Carioca e Tiradentes.
Foi gigantesco. Passou por cima da eterna comparação entre a poesia, digamos, formal e a das letras de música: brilhou em ambas muitas vezes e a quantidade destes brilhos é um argumento definitivo de sua obra.
Tudo passa com enorme brevidade. O trem da vida dispara pelos trilhos a seiscentos quilômetros por hora. Eu ainda lembro da primeira vez que li o nome de Antonio Cícero. Tudo é brevidade.
Quando um poeta se vai, o rombo parece ainda maior. No mundo das injustiças, ganâncias, covardia e tudo muito temperado com o azeite da hipocrisia, são os poetas que dão algum sentido à vida para que se possa prosseguir. Assim, perder um poeta é tirar o oxigênio da beleza, é asfixiar o cotidiano e apedrejar a sensação de humanidade. Mas como ir embora é inevitável, o poeta deixa seus versos para sempre, pouco importando se são extremamente sofisticados ou mais simples, se têm profundidade continental ou são mais rasos. Não importa. "O poeta é a pimenta do planeta".
As coisas não precisam de você/ Quem disse que eu tinha que precisar?/ As luzes brilham no Vidigal/ E não precisam de você/ Os Dois Irmãos também não.
O Hotel Marina quando acende/ Não é por nós dois/ Nem lembra o nosso amor.
Os inocentes do Leblon/ Esses nem sabem de você/ Nem vão querer saber
Monday, October 21, 2024
Gente interesseira x interessada
Era pra ser engraçado, talvez cruel ou nada disso. Há pouco me procurou uma pessoa que não falava comigo há anos. Não uma conhecida qualquer, mas alguém que contou comigo em várias situações importantes, e que evidentemente não foi recíproca, daquelas que some para não correr o risco mínimo de algum pedido. Tudo bem, a vida é assim e a maioria das pessoas é ingrata mesmo. Acontece que, se você só se relaciona com as pessoas que não vão te amolar, precisa estar preparado para o desprezo, a frieza e indiferença por aí. Depois de um tímido oi, a criatura vem perguntar se tem algo errado e digo que não. Insiste, persiste. Explico que não, mas...
"Puxa vida, há tanto tempo que a gente não se fala, né?" (show de cinismo)
”É, tem sim. Desde que você achou que eu ia te pedir favores ou dinheiro emprestado, simplesmente deixou de fazer contato e desapareceu." (não contem comigo para hipocrisia)
[Mensagem visualizada, silêncio e demora de réplica porque o soco foi no queixo e, se a pessoa não é completamente calhorda, ela sente
[Três minutos...
"Eu só queria saber como você está."
"Estou bem. Ótima semana".
"Fique bem". (certamente o objetivo original desta expressão era outro, mas com o tempo ela se tornou um ícone do "phoda c". reparem que em muitos casos, quem a usa gosta de manter distância regulamentar de todo mundo para "não alimentar relações tóxicas" ou "só ficar perto do que faz bem". resumo: gente interesseira que usa a companhia alheia como um objeto descartável...)
Polegar amarelo, outro ícone para dar fim a conversas desimportantes de gente que só te procura de maneira interesseira, não interessada e nem interessante. Toda relação positiva tem interesses também positivos: você tem o interesse fraternal, cordial, afetivo, amoroso, sexual etc, todas com desdobramentos. O interesseiro, não: ele só procura alguém para resolver algo, seja imediatamente ou não, mas já tendo em mente que tem prazo de validade para descartar o próximo, que vê como um simples objeto. Sua questão é apenas atender aos próprios interesses, geralmente materiais, e mais nada. É fácil identificar o interesseiro em qualquer lugar, basta pensar no nome da criatura em análise e refletir o seguinte: "Se a minha relação com fulano/a NÃO envolvesse dinheiro, poder, prestígio ou visibilidade, ela estaria aqui do meu lado?".
O jogo da vida é simples e direto. Com os recursos atuais, só não se fala quem simplesmente não quer. Se os tempos ficaram mais curtos, mandar um recado pela internet, um olá etc, não leva mais do que dez segundos. Desculpas esfarrapadas soam cada vez mais ridículas. Honestidade não faz mal a ninguém. Se você não sente obrigação de valorizar nenhum contato, este é um direito legítimo; apenas não reclame se no futuro o tratamento recebido for idêntico ao que você adotou. A indiferença é democrática e dói para todo mundo, até para os mais calhordas. Não que eu queira oferecer dor a ninguém, longe disso: é apenas uma questão de justiça.
[O polegar foi respondido com um smile. Para certas pessoas, só cabe mesmo o silêncio sepulcral.
@p.r.andel
Monday, October 14, 2024
Partime
Quando eu era criança, esse letreiro era a primeira coisa que me passava na cabeça quando crescesse: era um lugar onde os adultos conseguiam empregos. E foi assim por muitos e muitos anos, mesmo depois que fiquei adulto e comecei a trabalhar. Perto deste endereço eu fiz um de meus estágios, há 32 anos, na Firjan. E perto também, há um ótimo restaurante há muitos anos, que hoje se chama Caló(geras).
Hoje resolvi almoçar justamente no Caló. Vou lá de tempos em tempos. Peguei o VLT. Antes, achei graça porque uma menininha correu para apertar o botão da porta, crianças adoram botões. Saltei na Antônio Carlos. Já tinha me deparado com os restos do letreiro muitas vezes, mas somente hoje resolvi fotografar.
A loja está fechada há anos. O lugar dos empregos acabou. Os empregos estão acabando também. A cidade está sempre com cara de feriado, meio vazia. Nas esquinas, as piadas foram trocadas por olhares perdidos. Qualquer coisa é motivo para agressões, tiros, assassinatos. Ódio. Ódio.
Eu era criança e pensava: tenho que conseguir um emprego para ajudar meus pais. Deu certo por uns dez anos, até que eles se foram. Continuo trabalhando, as dívidas são as mesmas mas não preciso botar roupas sóbrias, ando de chinelões e me livrei da tortura mensal de viagens de avião. Para alguns colegas de faculdade, deixar a carreira de origem para virar camelô de livros é um fracasso supremo, mas cada um só vê o que sua acuidade permite - e desconfio que alguns não têm coragem de trocar dinheiro pela serenidade. De chinelos, quando chego num grupo, eu ainda dou as cartas - exceto quando sou sabotado.
E justamente por ser um camelô de livros é que eu posso almoçar às três da tarde, me deparando antes com lembranças marcantes de criança. O letreiro da Esso já não existe mais, agora é o prédio do Ibmec, foi melhor assim.
Ali pertinho, a uns 30 metros, sobrevive a Casa Vilarino. Só pelo fato de ter sido o lugar do primeiro encontro de Vinicius de Moraes com Tom Jobim, é um palco consagrado. Imagine as conversas boêmias dos anos 1940 e 1950.
Saio do Caló, desço a Santa Luzia e meus chinelões me levam para o Metrô, sentido Copacabana. Meu caminho pelo mundo eu mesmo traço, ou rabisco para digitar.
Sunday, October 13, 2024
Dia Mundial do Escritor
Dez da noite de domingo, todos recolhidos, então meu amigo Bigode lembra numa postagem que hoje é o Dia Mundial do Escritor.
Bem legal. Em julho tem o Dia Nacional, bem na véspera do meu aniversário.
Passei um dia de escritor. Em silêncio.
Trabalhei. Escrevi para um livro.
Vi um show dos Rolling Stones e o excelente programa Persona, em reprise com Ary Toledo - um artista gigantesco que os mais jovens não têm ideia.
Não interajo muito com escritores. Na verdade, não interajo muito com todo mundo. Já fiz muito disso, agora é diferente. E escrever é necessariamente um exercício solitário.
Pela quantidade de pessoas com quem falei nos últimos 14 anos - milhares -, provavelmente muita gente gostou do que escrevi e sou grato por isso. Muito grato. Imagine, há 15 anos eu sonhava em ser um autor publicado, mas não tinha a menor chance de acontecer. Só que veio o inesperado e, entre parcerias e trabalhos solo, foram 40 livros. Pronto. Se no futuro existirem sebos, tenho chance da minha garrafinha jogada ao mar parar nas mãos de alguém, que poderá gostar ou detestar, até ser indiferente, mas eu nada saberei porque já estarei morto há muito tempo. E isso é bonito nos livros: a sintonia entre pessoas sem contato. Meus autores prediletos praticamente não me conheceram.
Não lucrei nada, tenho lutado como um cão, cada dia é um dia, mas não seria honesto dizer que não fui feliz. Fui e muito. Por exemplo, eu gosto muito do meu time de futebol e escrevi 26 livros sobre ele, imagine. Quantas pessoas no mundo conseguiram fazer o mesmo por seus times? É muito difícil, então me realizei. E fora do futebol foi outro monte que muito me orgulha. Basicamente escrevo sobre o Rio, as ruas, os bairros que considero minhas casas, as pessoas humildes, meus poucos ídolos, meus amigos mortos, um ou outro amor.
Tanto faz se é um, dois, cinco ou vinte livros: a emoção é a mesma. Um novo livro é sempre um coração batendo mais forte. Começa tudo de novo.
Escrevi coisas que acho muito boas, outras boas e outras aceitáveis. O que faço é descrever o que vejo, sinto e penso. Muita gente chorou e me disse, outros riram muito. Os haters vociferaram sem ler, é claro. O fato é que não houve indiferença e isso é ótimo.
Voltando ao meu time: será que, naquela noite de 1973, quando virei Fluminense por causa da palavra e do nome do Félix, já estava escrito que, um dia, eu escreveria sobre o Flu? Não sei, mas eu lembro direitinho daquela noite, hoje tão longe mas tão perto. Outra noite que lembro muito é a do famoso gol de barriga em 1995: ali eu mudei para sempre.
Minha única tristeza é meus pais não terem visto esse trabalho, nem meu irmão. Eles batalharam para que eu pudesse estudar, se preocuparam comigo e nunca me patrulharam: confiaram em mim. Teria sido muito bom ter fotos deles com algum livro meu, mas tudo bem: não se pode vencer todas.
"Agora é noite e o silêncio prevalece.
Daqui a pouco o proletariado vai acordar, ainda no escuro, com suas lutas e marmitas, para a longa travessia ferroviária até a gare da Central do Brasil.
Nas ruas, famintos sem casa vão virar a noite. É o medo do estupro ou de um assassinato horrível. Não devíamos aceitar que ninguém vivesse assim mas, numa sociedade marcada pela hipocrisia e indiferença, o que temos é o desprezo.
Agora é noite, a semana invade o meio do mês e a ampulheta do ano está se esvaziando.
Perdemos homens admiráveis antes da hora, mas os medíocres continuam firmes.
A corrupção e a hipocrisia estão de braços dados e dedo em riste. Somos uma grande Gotham City banhada pelo fascismo. Mas é preciso resistir.
Perto da janela, um vizinho ouve rádio e a voz de Renato Russo corta o silêncio: 'Cordeiro de Deus que tirais o pecado do mundo, dai-nos a paz.'
A noite de domingo mistura estranhamente solidão, saudade, melancolia e esperança. Quem vencerá?"
@p.r.andel
Friday, October 11, 2024
Tarde de bola
SEXTA-FEIRA vadia, fria e meio silenciosa, então surge na TV Hungria versus Holanda pela Liga das Nações. Toda hora tem uma competição: Copa do Mundo, Copa América, Eurocopa, Liga das Nações. Bem, acabou a Copa das Confederações.
Jogo na Hungria, estádio lotado. Setenta anos depois de Puskás, Czibor, Hidegukti e Kocsis ainda alimenta sonhos e esperanças, mesmo que vãs. Um time daqueles de novo? Nunca mais. A Hungria fez 10 a 1 em El Salvador na Copa da Espanha, a maior goleada dos Mundiais. E também ganhou do Brasil por 3 a 0 em 1986, com um gol de Détári. Salvo engano, foi a última atuação de Leão como titular da Seleção Brasileira. Minha simpatia pela Hungria, além dos craques do passado, tem a ver com o Fluminense: a semelhança das cores. Ah, em 1982 tinha o goleiro Mészáros, que faleceu ano passado. Uma vez eu fiquei ouvindo pelo radinho Fluminense x Honved, eles ganharam por 2 a 0 no torneio de Córdoba. Não lrmbro se chegou a ter a transmissão ou só as informações da partida. O que sei é que perdemos para o grande Honved dos anos 1950. E o radinho estava colado na minha cara.
O sonho da Holanda não tem setenta anos, mas cinquenta. O que dizer do time de 1974 que, mesmo sem Cruyff, chegou à final do Mundial da Argentina em 1978? Um bando de craques geniais, malucos e humildes: todos atacavam, defendiam e trocavam de posição. Os adversários enlouqueceram. Krol, Neeskens, Rep, Suurbier. Jongbloed, uma legenda. Van era com a Holanda: Van Beveren, Van Breukelen, Van Der Kherkof, Van Basten - e na música, Van Halen. Agora quase não tem. A segunda leva, com a turma do Gullit, foi excelente também. O terceiro vice mundial, conquistado em 2010, serviu para que, apesar da frustração, a Holanda fosse tão grande a ponto de ser a única seleção que não conquistou uma Copa, mas com status como se tivesse conquistado.
[Máquina Tricolor e Laranja Mecânica têm tudo a ver, de ponta a ponta, da costa leste à oeste
A partida acabou sendo divertida, mas não brilhante. Prevaleceu a marcação da Hungria no primeiro tempo, quando a seleção mandante fez um belo gol: cruzamento da esquerda e finalização de primeira no alto à esquerda. No segundo tempo a Holanda predominou, mesmo com um jogador a menos, e acabou empatando no fim com bela cabeçada de Dumfries. Memphis Depay ainda não está por lá. Na hora da comemoração foi fácil ver como o uniforme holandês azul é bonito, embora a eterna camisa laranja seja imbatível.
Ah, no primeiro tempo teve um lance sensacional, que só se compara a uma decisão por pênaltis - sempre corrigida pelo eterno Mário Vianna, com seus dois ênes: "NÃO SÃO PÊNALTIS, MAS TIROS LIVRES DIRETOS DA MARCA PENAL". Ufa! Vamos ao lance: dois toques dentro da área húngara, dez húngaros debaixo da trave, dez holandeses pensando onde a bola pode chegar ao gol, tensão discussão. A bola parada depois da marca do pênalti. A cobrança é uma bomba, mas o desfecho é improvável: o goleiro defende sem rebote.
No fim, os húngaros - que contaram com a vitória magra em boa parte do tempo - saíram meio decepcionados, mas não deixaram de cantar e gritar para seus jogadores. Foi uma boa partida. Não, não: Czibor, Hidegukti, Puskás e Kocsis, nunca mais. Cruyff e Neeskens, nunca mais. Contudo, toda vez que começa um jogo, todos os torcedores voltam a ter doze ou dez anos de idade - assim, tudo é visto com o amoroso doce licor da infância. Faz muito tempo, mas é impossível para Holanda e Hungria entrarem em campo sem abrir as cortinas do passado, um belo e fascinante passado.
O jogo do radinho. O Honved tinha outro Kocsis. O Fluzão? Paulo Goulart, Marinho, Ademilton, Edinho e Ricardo Longhi; Pintinho, Givanildo e Mário; Osni, Tulica e Zezé. Depois entraram Edevaldo, Rubens Galaxe, Robertinho e Parraro. O Flu vivia tempos de crise e não ganhava nada desde 1977, mas ninguém sabia que, meses depois, com sete desses jogadores que perderam para o Honved, surgiria um grande campeão. Certas coisas a gente só entende depois que o tempo passou.
Aquele radinho me traz muitas coisas.
Thursday, October 10, 2024
Gata negra
A felicidade de quem eu gosto também é a minha felicidade. Pode ser gigantesca ou ínfima, não importa: um naco de felicidade é um naco e pronto. Seja uma grande conquista ou um detalhe minúsculo, tanto faz.
Tão estranho quanto aquele que não fortalece quem gosta é quem não tem a capacidade de elogiar nada. Todos somos capazes de fazer alguma coisa que cabe elogio. Todos. E pode ter certeza: quem não sabe elogiar acaba sendo infeliz também na hora de criticar, isso quando não revela facetas piores.
No mínimo, causa desconfiança.
Antes eu achava que era só o jeito das pessoas, mas o tempo e a experiência só me confirmaram o básico: gente que não joga junto e não elogia carrega recalques, e poucas coisas são mais deprimentes do que a pessoa recalcada diante de qualquer êxito ou felicidade alheia, por menor que seja. Um tiquinho que seja.
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É muito fácil distinguir um elogio sincero de uma bajulação barata.
O bajulador dificilmente tem qualidades. No máximo, interesse pessoal. Uma ou outra mesquinharia. Chega a ser constrangedor para os olhares mais atentos.
E o bajulado? Senhor.
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Desde pequeno, sempre fiquei impressionado e até atemorizado com o tamanho das grandes obras e coisas. Para mim, o armário de dois andares era gigante. Depois descobri que o prédio era gigantesco também. Que a praia de Copacabana era imensa. Por fim, a grandeza monumental do Maracanã. Tudo sempre me impressionou.
Hoje mesmo, passando pelo prédio da Nova Petrobras, tive a sensação de sempre: somos todos formiguinhas minúsculas diante de nossas próprias realizações. Qualquer bicho pequeno passaria com medo se os grandes prédios fossem bichos grandões, mas nós, seres humanos, passamos tranquilos - quero dizer, eu não. Sempre me sinto pequenininho, minúsculo que sou, mesmo que eu possa ter grande importância para algumas pessoas. Há quem chame isso de falta de personalidade, de confiança ou excesso de modéstia. Nada disso: é apenas um belo exercício de entendimento da nossa pequenez e fragilidade. Só.
Depois de tantos anos, ainda me sinto pequenininho. O que mudou foi o passar dos anos e o aumento dos problemas, mas lá no fundo ainda somos os mesmos. Podemos evoluir e até piorar, o corpo envelhece, mas a essência é a mesma.
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Na loteria da Marechal Floriano - ou seria Visconde de Inhaúma? - tem uma gata negra de arrepiar.
Gata negra e jovem, gata e tricolor.
Se a gente ganhar no bolão, ela merece uma cota de prêmio.
Gatona mesmo. E simpática. E educada.
Muitas coisas boas num pacote só.
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Falando em gata negra, eu acho graça de alguns colegas que sempre brincavam comigo, tudo por causa do meu pequeno sucesso com jovens mulheres negras. Isso vem desde os tempos da faculdade, há muito tempo portanto, já que tenho 30 anos de formado.
O pequeno sucesso vem da adolescência até, na faculdade é que descobriram.
O motivo, não sei. Talvez haja mais de um. É engraçado, de toda forma. Meu pequeno sucesso nunca teve limitação de cor, é bom que se diga.
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Já são quase quatro da manhã. Eu acordo às três, perco o sono, escrevo para tentar dormir de novo e às vezes dá certo. É o que vou tentar de novo.
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O que vai ser de mim quando eu crescer?
@p.r.andel
Tuesday, October 08, 2024
Enquanto falamos sobre réstias de democracia
ENQUANTO FALAMOS SOBRE RÉSTIAS DE DEMOCRACIA
(A ENSOLARADA GOTHAM CITY SEM BATMAN, COMISSÁRIO GORDON E O RAIO QUE O PARTA)
Pessoas desmaiadas nas calçadas de todas as capitais brasileiras às sete da manhã. Não dormiram à noite, porque estão nas ruas e têm medo de ser incendiadas, estupradas ou chacinadas. Ninguém liga.
Trabalhadores dignos e honestos descem esfomeados na gare da Central do Brasil. Vão começar a trabalhar até às cinco da tarde. Quem tiver sorte conseguirá almoçar biscoitos na saída do expediente.
Em várias ruas de inúmeros municípios, bandidos armados dão as cartas com seus fuzis, definindo quem vive ou morre, quem sai de casa ou se tranca.
Crianças com suas caixas de engraxate ou de balas de açúcar fixam seus olhos nas TVs ligadas nas lojas de eletrodomésticos, sonhando com desenhos animados e ter o direito de ser crianças, mas só por alguns instantes, pois a vida real é cruel.
Numa grande cidade como o Rio de Janeiro, em vários bairros mas especialmente no coração da capital, você vê portas e janelas fechadas, inúmeras placas de "vendo" ou "alugo", mas manchetes fajutas de jornais garantem que tudo vai muito bem, muito bem mesmo. Já os veteranos da região nunca a viram tão vazia...
Os bancos nunca tiveram tanto dinheiro. Os pobres nunca foram tão pobres. A miséria nunca foi tão miserável. A exclusão e a desigualdade nunca foram tão evidentes. Desassistência, desalento, despejos, choques de ordem. "Miséria, miséria em cada canto, riquezas são diferentes".
"As instituições estão funcionando normalmente no Estado Democrático de Direito".
"Riquezas são diferenças ".
A "grande festa da democracia" basicamente se limita ao dia da votação de cartas marcadas. É bom poder votar, ainda mais num país marcado por ditaduras e golpes, só que é pouco.
É muito cômodo colocar a culpa exclusivamente na população.
Enquanto isso, nas autarquias, gabinetes e burocracias, nos escritórios e grandes almoços, os conservadores e revolucionários vão muito bem, obrigado. O mais importante de tudo é eleger e reeleger parlamentares respeitáveis, para assim manter tudo como sempre esteve.
Monday, October 07, 2024
Seis da tarde
O cachorrinho apressado faz sua dona linda quase correr enquanto puxa a coleira. Ela é muito gata, tão linda que lembra a Luciene, ou a Marina ou a Juliana, quem sabe a Ana Paula que morava na Figueiredo de Magalhães. Deve ter uns 25, 27 anos e não tem mais de um metro e sessenta, nem precisa.
O cachorrinho parece que está num mundo novo: tem pressa, cheira tudo, olha para todos os lados. É um Basset, que a gente carinhosamente chama de salsicha. Ele fica doido com o gramado do Edifício Senado, onde fica a Nova Petrobras - talvez meu amigo Wagner Victer esteja no escritório para resolver problemas nacionais - ficamos de almoçar no restaurante asiático da Gomes Freire, mas ainda não entendemos o horário irregular da casa.
Alguns vizinhos estão em suas janelas, espiando a beleza do cair da tarde, que se choca com a dura vida adulta no Rio de Janeiro, lindo geograficamente e cada vez mais agressivo como cidade. De toda forma, vale apreciar o azul do infinito emoldurando a meia lua, enquanto passa o trânsito de poucos carros e nenhum ônibus.
[os garotos magriços do iFood começam a dar as caras com suas bicicletas alugadas e a vontade imensa de trabalhar, mesmo que de forma injusta, por tão pouco.
Ainda a gata. Com suas pernas torneadas que certamente encantam a muitos fãs, ela tem um sorriso discreto enquanto puxa o maravilhoso cão salsichinha, louco por qualquer novidade na rua. Uma quadra depois, cachorros veteranos da área se reúnem perto da falecida agência da Caixa, agora coberta por tristes tapumes rosados. Logo ali, a barraca de churrasquinho faz sucesso, principalmente porque sua TV é grande e muitos espiam o jogo de futebol da tarde - assim como os cachorros espiam as frangueiras na padaria, os homens espiam a TV com futebol num bar ou equivalente.
O azul vai escurecendo, faz até um leve frio às vésperas de uma terça feira quente.
[perto da Cruz Vermelha, um rapaz desesperado e choroso olha para cima, vê os prédios, se sente completamente desprezado e diz que só queria ter uma casinha. Nada que as eleições de ontem resolvam, porque quase nunca resolvem absolutamente nada.
[nós somos muitas coisas, inclusive um país cheio de pessoas desesperadas, chorosas e sem casa. Quase ninguém liga.
O imponente prédio da Nova Petrobras foi construído num terreno onde havia a maior vila operária nos primórdios do século XX. Tinha mais de 140 casas e centenas de quartos para solteiros, além de dispor de farmácia, açougue e até sapataria. Pioneiros da residência com serviços. Era a Villa Ruy Barbosa, que teve moradores ilustres como o casal Dalva de Oliveira e Herivelto Martins, o multi ator - tricolor! - Mário Lago, o futuro super cantor Agnaldo Timóteo e até Silvio Santos - tricolor. Não há nenhum vestígio na moderna área da Nova Petrobras que lembre a Villa.
Os vizinhos então deixam as janelas, os carros vão minguando, não há ônibus e até os táxis se mandam, os cachorros veteranos são levados embora por seus donos e logo, logo, a gatona das lindas pernas dará adeus com seu cãozinho salsicha. Tudo vai virar só lembranças em breve, do jeito que a vida é.
@p.r.andel
Saturday, October 05, 2024
Quatro pílulas
a
Há quem diga que só interessa o que realmente aconteceu na vida. É um ponto de vista justo. Mas será que é assim mesmo? Não tenho certeza.
Salvo os desatentos, desmemoriados e quem viva desprezando o próximo, mesmo que o novo sempre venha - e vem - o quase é, de alguma forma, uma presença.
O beijo que quase aconteceu, a amizade que quase foi retomada, o grande plano não executado, o amor não exatamente correspondido na medida exata. O momento em que você está numa bifurcação, escolhe um caminho e muito depois pensa "E se tivesse ido pelo outro".
Muitas vezes, em segundos, os trajetos se tornam definitivos e nem sempre dá para voltar atrás. E se...?
["Sorriu para mim/não disse nada porém/fez um jeitinho de quem quer voltar/dançava com alguém que me roubou seu amor/agora é tarde demais, não sofro mais essa dor/é tarde, é tarde, arranjei um novo amor."
b
O silêncio infalível de quem se sente sozinho num bairro inteiro. Todos estão dormindo, com exceção das pessoas que sofrem muito nas ruas. À janela, não há uma única outra janela acesa. Não passa um carro, um ônibus. O filme do Canal Brasil acabou.
É tarde. Todos estão dormindo. Não há uma mensagem no WhatsApp. Nenhuma postagem.
O único sinal de ruído é o ventilador estranhamente ligado na madrugada fria, menos para simular ar condicionado e mais para que o motor elétrico em funcionamento seja um sinal de vida.
[Ao longe e nem tão longe, o Brasil queima em crimes bancados por bispos escrotos e milicianos
c
Tenho saudades do meu time. Ele não era apenas um time, mas um ambiente, uma atmosfera. Tanto fazia se a arquibancada estava lindamente lotada debaixo de uma nuvem continental de pó de arroz, tanto fazia: podia ser também uma quarta-feira vazia, chuvosa, com alguns bandeirões e a esperança numa vitória, mesmo que não significasse um título. Meu time era ter meu pai me puxando pela mão e me dando cachorro quente; era a sala das torcidas onde você espiava a dança das cores embalada pelo samba autêntico. Tenho saudades do meu time, todo de branco em campo, cheio de valentes jogadores negros, alimentando os sonhos dos garotos com o jogo de bola que, mesmo tão contaminado por ora, mantém seu fascínio através dos tempos. Eu tenho saudades de quando éramos quase todos anônimos e ninguém precisava se promover com polêmicas medíocres, porque o que realmente importava era o time - e não a patética vaidade do senhor dono da razão. Saudades de quando tudo era mais simples e humilde - o Maracanã era povo de verdade. Há quarenta anos, eu deitava sozinho no chão da geral e o céu me parecia uma grande tela circular: as nuvens lentamente navegando pelo céu, uma ou outra estrela sobressaindo e uma réstia de infinito que só revi anos depois nas telas circulares dos shows do Pink Floyd. Eu tenho saudades dos abraços sinceros na arquibancada, saudades dos maravilhosos vendedores de refrigerantes com seus capacetes, tanques de refresco nas costas, roupas brancas e visual de astronautas. Saudades das grandes bandeiras. Saudades dos grandes placares eletrônicos com suas lâmpadas e o nosso escudo estampado nelas quando o time subia a escada do túnel à esquerda para entrar em campo - dezenas de garotinhos corriam loucamente pelo gramado, sonhando em estarem ali um dia como protagonistas. Está quase tudo morto pelo tempo, pois ele sempre vence, mas existe um refúgio permanente: o das minhas lembranças, o da saudade.
[no fim, tudo é desimportante
d
Amanheceu. É sábado. Há frio e chuva. Poderia ter sido a melhor noite de sono do ano.
Fracassei de forma retumbante.
Vamos para novos fracassos.
@p.r.andel