Sunday, July 28, 2024

Tchau, julho

A semana começa no domingo, mas a maioria só sente quando chega a noite, porque vem uma semana à frente e muitos querem que escorra de uma vez para que chegue a folga. 

Assim vão passando os dias, meses, anos, décadas. 

Será que isso tudo faz sentido? Não creio. O mundo deveria ser liderado pela arte e reflexão, temos terra e comida demais mas também miséria e fome demais. Salvo alguns alívios, essa sempre foi a regra da ascensão do capitalismo e jamais mudará, porque depende da conscientização dos homens, o que é utopia - até mesmo os que mais confiamos podem se revelar verdadeiros fracassos de fraternidade - o que alguns idiotas chamam de voluntarismo. 

Um exemplo típico: há pouco, vi na TV sobre um bacalhau delicioso feito em Paris. Cento e vinte euros. Grrrr! Tive pena do bacalhau como tenho de todos os bichos, mesmo não conseguindo ser vegetariano/vegano. Minha mãe chorava por isso. Então me lembrei que, em algumas situações, conheci pessoas que fazem um belo e justo trabalho/discurso sobre a causa animal, só que uma ou outra eu flagrei em situação de completa indiferença para com amigos(?) necessitados. Todos os bichos merecem apreço, mas o ser humano também. Enfim...

Julho foi rápido e está no fim. Vamos nos divertir um pouco com as Olimpíadas, para aliviar nossas almas. Eu continuo me sentindo o piloto de um avião rumo ao choque definitivo contra uma montanha. Enquanto isso vivo, trabalho, luto muito, sinto muitas dores sem remédio, observo egoísmo, ingratidão, falsidade e, quando isso se mistura às manchetes, eu sinto toda a desesperança. Bom, pelo menos ainda tenho alguns amigos para conversar. É um alívio diante do caos. 

Talvez não durma cedo. Há muito tempo não tenho sonhos bons. Fico torcendo para a sorte por absoluta falta de perspectivas. Então vou escrever, produzir, vender, escutar, navegar por um milhão de lembranças, vou torcer pela felicidade de pessoas que não conheço, vou torcer pelo sucesso de outras e eu mesmo não estou nem aí: tendo uma casa, cama, chuveiro, smartphone e sanduíche, está tudo bem. Era o que todo mundo merecia, e que aliviaria muitas dores do mundo, mas foi o que disse antes: raro é o homem que quer ver de verdade a igualdade entre os semelhantes.

Acabou o domingo. Que todos tenham uma semana de paz e momentos felizes. Uma esmolinha de paz para cada um.

Friday, July 26, 2024

Gente do Rio, gente do mundo

Mal a TV ligou, surgiram às imagens do adeus a Rosa Magalhães, figura íntima das casas cariocas e nacionais há décadas, e que se tornou a carnavalesca com mais títulos em nossa festa maior. 

Rosa é fruto da imensa árvore deixada por Fernando Pamplona, outro símbolo carnavalesco de glória. E num estalo, ouvindo as notícias, só de figuras do Carnaval a gente se lembra de nomes como Viriato Ferreira e Joãozinho Trinta - não precisa ser carioca para ser,  incorporado de vez pela história da cidade. É o caso do mineiro Telê Santana, que faria aniversário nesta sexta-feira, foi ídolo do Fluzão e foi um dos maiores treinadores da história do futebol brasileiro. No futebol a gente tem um monte deles, que vieram de inúmeros lugares e se consagraram aqui: os pernambucanos Ademir Menezes e Vavá, os paulista Romeu Pelicciari e Roberto Rivellino, o gaúcho Renato Portaluppi, dentre tantos outros. No entanto, nenhum deles superou Moisés, o mitológico zagueiro dos anos 1970, em símbolo de carioquice: bom humor, irreverência, malandragem e, claro, Carnaval: foi Moisés que criou o famoso Bloco das Piranhas, que desfilava em Madureira, era basicamente composto por jogadores de futebol vestidos de mulher, e que arrastava multidões pelo bairro com cara de samba. 

A história do Rio foi contada por muitos cronistas e, dentre eles, craques que também vieram de fora para ornamentar o texto carioca. Imediatamente lembramos do gênio capixaba Rubem Braga, logo associado a feras como os mineiros Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos, o também capixaba Carlinhos Oliveira e o incrível Ivan Lessa, que era inacreditavelmente paulista, mas só de nascença. Mais recentemente, a literatura brasileira tem o nome do imortal Ruy Castro, perfeita tradução do carioca nascido em Minas Gerais - e a ABL também conta com a genialidade de São Gilberto Gil, cidadão baiano do mundo cravejado na praia de Copacabana. Por lá está a maravilhosa Fernanda Montenegro, mas essa é carioca de corpo, alma e certidão. 

Quanta gente boa brilhou e brilha no Rio? Falemos das letras, das artes em geral e dos esportes, da vida cotidiana. O cinema, o teatro, a música, as artes plásticas. 

É o Rio, a mistura de gentes do mundo que chega neste lugar e incorpora seu espírito. São muitos sotaques, temperos e personalidades que se misturam, resultando numa química única. Mesmo com a cidade tão sofrida e maltratada, ainda existe uma saída que só a arte proporciona. Muitas pessoas trabalharam muito no passado para que tivéssemos esse status. A maioria já não está por aqui fisicamente, mas suas assinaturas são eternas presenças. 

Novamente recorrendo a Ivan Lessa, herói da crônica brasileira, em uma de suas geniais sacadas: 

"Conseqüentemente: aí está, viva e atuante, a crônica do cronista brasileiro.

Pouco importa que o cronista ou a cronista limite-se a relatar seu encontro no bar ou sua ida ao cabeleireiro.

Tanto faz que seja elitista ou literariamente limitador.

E daí que tenha menos profundidade que mergulhadores mais audazes como Milan Kundera e Marion Zimmer Bradley?

A crônica vai registrando, o cronista vai falando sozinho diante de todo mundo."

Sofremos um golpe duro bem em Copacabana. Morreu Rosa Magalhães. Milton Cunha, um dos maiores símbolos da nossa alegria, acaba de aparecer em lágrimas na TV e não poderia ser de outra forma. 

A última sexta-feira de julho não é quente nem fria, nem nublada ou ensolarada. Isso deve dizer muitas coisas. 

@pauloandel

Friday, July 19, 2024

Dia Nacional do Futebol

Ah, se não fosse o futebol… Como eu ia me entorpecer em sonhos diante do mundo injusto e cruel, cheio de mortes por covardia e gente dizendo adeus muito antes do razoável? 

Como eu ia ter alguma alegria durante a semana ou na noite de domingo? 

Escrevo sobre muitas coisas, mas futebol é essencial para mim. Ele é o álcool que pouco bebo, ele é o cigarro verde que não fumo, é o alívio para noites silenciosas e viradas por simples tensão. Há cinquenta anos o futebol me salva do suicídio, então não pode ser pouca coisa.

O jogo, o gol, o lance, a gente que faz da arquibancada aquarela, a gente que se abraça e ri ou chora, a gente que namora e deseja. Ah, o futebol, que já foi samba e rock e agora é cumbia, é ele que me tira da miséria e do desespero.

Quer uma noção da importância? Neste sábado mesmo no Nilton Santos. Em qualquer outro lugar, uma queda de luz diz pouca coisa. Agora, faltar luz durante um jogo de futebol é plantão jornalístico.

Meu futebol tem botão, dadinho, bolinha de isopor, areia da praia, figurinha, mesa de preguinho, boneco, camisa, flâmula e livros, muitos livros. Tem saudades da família, beijo da namorada, sacanagem nas cadeiras, abraço de irmãos, choro, riso, suspiro e tudo se resume num UUUUUUHHH quando a bola passa pertinho da trave ou o goleiro espalma para corner, no Maracanã abarrotado. 

Meu futebol tem gente banguela, camisa rasgada, chinelo de dedo e geral abarrotada, todo mundo se apertando na chuva e torcendo para a Suderj abrir o portão que dá acesso ao alto da arquibancada, onde tem uma enorme cobertura de concreto que faz o som ecoar pela terra.

Ah, o futebol. Noites em claro, viradas impossíveis, sonhos e drama. Futebol de lembranças, que faz voltar no tempo e ver na tela momentos arrebatadores.

Talvez o meu futebol nem exista mais, mas ele é tão bom que a sua simples lembrança já alimenta muitas fantasias maravilhosas. Todas elas me fazem sentir vivo, sereno, com o coração cheio de esperança mesmo que as probabilidades sejam minúsculas.

Claro que há defeitos mis no futebol, mas o saldo positivo justifica a batalha.

@p.r.andel

Thursday, July 18, 2024

1346

Eu frequentei a casa de Fred entre 1977 e 1991. Foi algo decisivo em minha vida, tão importante quanto a faculdade. Tirando as horas de sono, certamente passei mais tempo lá do que em qualquer outro lugar da juventude. Na casa do Fred aprendi a jogar, ouvir música, beber, namorar e conversar. Nada disso foi planejado, mas fruto do acaso e do destino: Dona Magda, a mãe do Fred, trabalhava em hotel, então o apartamento estava sempre livre para nós, do meio dia à meia noite. Foram dias fantásticos. Tínhamos um grupo e um enorme prazer em estarmos juntos a qualquer hora, para qualquer coisa: jogar cartas, ouvir LPs, ver TV, praticar conversa fiada ou mesmo nada. Fred foi uma grande referência para mim e um tremendo desfalque com sua morte precoce - acho inacreditável que ele, Xuru e Luiz Magno tenham morrido tão jovens, três caras que eram realmente meus amigos de verdade. É muita coisa.

Voltar no tempo só faria sentido para mim se pudesse ter meus pais e as pessoas queridas de volta, nem que fosse por um tempinho. Tudo está muito longe, mas sinto falta, não me acostumei com o óbvio: nunca mais estarei com meus amigos, a não ser em minhas lembranças. Tudo bem. Envelhecer tem seus bônus e ônus também. É do jogo da vida.

Wednesday, July 17, 2024

Trinta anos depois da Copa de 1994

Eis o tempo, que escorre e vai oferecendo reflexões e reflexões, ainda mais no futebol por ter uma espécie de tempo próprio. 

Imagine a ficção científica se você estivesse em 1994 e um cientista te oferecesse uma oportunidade como a do famoso filme "De volta para o futuro". "Você vai para 2024 e espia como está a Seleção Brasileira, depois volta". O susto seria grande. Estamos mal, bem mal e com evidente preocupação. 

Há trinta anos, o Brasil vivia uma loucura. Depois de 24 anos, voltamos a ganhar uma Copa do Mundo em decisão dramática contra a velha Itália, sempre ela. Pela primeira vez, a Copa foi decidida nos pênaltis - e talvez esse drama ajude a explicar porque nós, brasileiros, passamos anos e anos sacaneando os tetra campeões.

Ah, o Zinho é enceradeira. Ah, o Brasil não joga bonito. Ah, o Brasil não goleia. 

Não, a Seleção de 1994 não se compara às suas antecessoras vitoriosas em 1958, 1962 e principalmente 1970. Mas qual outra Seleção no mundo se compararia? Talvez justamente as que não venceram, talvez. Hungria 1954, Holanda 1974 e Brasil, ele mesmo, 1982.

A verdade é que, longe de paternalismos, não soubemos dar o devido valor aos tetra. Reconhecer que, desde a retumbante goleada sobre a Bolívia no Arruda, reagimos nas eliminatórias até a batalha final diante do Uruguai, quando Romário fez a maior exibição de sua carreira. 

O Brasil não era uma tampinha chutada no chão. Na boca da Copa, perdeu Mozer e Ricardo Gomes, depois Ricardo Rocha - que outra Seleção aguentaria esse tranco? E o azar em ter um craque como Raí na pior fase de sua carreira? Tivemos e superamos. 

Taffarel, goleiraço. Jorginho, monstruoso. Aldair e Márcio Santos, duas feras. Leonardo, ótimo. Quando Branco entrou, decidiu e mostrou a que veio. 

Dunga e Mauro Silva formavam uma tremenda dupla de volantes. Mazinho era um jogadoraço, capaz de fazer várias funções. E Zinho ia muito, mas muito além da enceradeira, como provou no decorrer de sua carreira. 

Bebeto e Romário. Desnecessário comentar. 

Membro da comissão técnica de 1970, Parreira já nasceu com o DNA da vitória. Um dos treinadores que mais classificou equipes para os mundiais, fez trabalhos espetaculares no Brasil, sendo o Fluminense de 1984 o melhor deles. Com Parreira, o Brasil foi frio, equilibrado, pragmático mas também talentoso. Ao lado de Parreira, o implacável e glorioso Zagallo. 

Não brilhamos intensamente em todos os jogos, mas o fato é que o Brasil se impôs a todos os rivais na Copa dos EUA. Sua única grande dificuldade além da final foi a semifinal diante da poderosa Holanda, num jogaço por sinal. Em todas as partidas o futebol brasileiro foi superior, traduzindo sua força em grandes jogadas. 

A beleza dos gols de Romário e Bebeto, a eficiência dos passes de Dunga, os bons cruzamentos de Jorginho, a  elegância do miolo com Aldair e Márcio Santos, tudo isso está registrado. 

Ok, não fomos brilhantes o tempo todo e nem precisávamos. Agimos quando foi preciso. Rever os jogos contra a Holanda e a Suécia a seguir, pela semifinal, ajudaria muitos a perceber que a nossa Seleção estava longe da mediocridade.

Há trinta anos o Brasil parou e enlouqueceu. As pessoas foram ao delírio. Nós não tínhamos mais Pelé e Garrincha, Didi ou Tostão, é fato, mas ainda tínhamos uma cortina do passado: Bebeto e Romário foram assombrosos, Taffarel e Jorginho foram devastadores, Branco foi demolidor, Dunga foi o símbolo da garra. O Brasil ganhou o tetra porque mereceu. 

Quem não queria ter a chance de rever Pelé no campo? Ou Rivellino? Ou Didi? Claro que sim, mas na inevitável ausência destes craques porque o tempo não para, não há como não reconhecer que o Brasil de 1994 teve o seu valor. Que o digam os tempos modernos em que estamos, ao menos por ora. 

@pauloandel

Sunday, July 14, 2024

Sérgio Cabral

Morreu num domingo frio de julho, aos 87 anos, um dos maiores brasileiros que já tivemos. 

É difícil definir a trajetória de Sérgio Cabral em poucas palavras. Impossível, aliás. Por mais de meio século ele foi um dos faróis do Rio, disseminando informação, arte e cultura. 

Jornalista por ofício, escritor, biógrafo, pesquisador, colecionador e muito mais, Sérgio foi um dos aríetes da Cultura popular carioca. Ao lado de outros grandes nomes, tais como Albino Pinheiro e Hermínio Bello de Carvalho, ele ajudou muito no conhecimento e popularização de expressões artísticas como o samba e, particularmente, as marchinhas de Carnaval. 

Como não existe cultura popular do Brasil que não esteja próxima do futebol, Sérgio Cabral marcou presença firme como jornalista, cronista e comentarista de futebol. Torcedor apaixonado do Vasco da Gama, era uma espécie de memorabilia ambulante do futebol carioca. 

Quando a barra pesou, Sérgio estava no Pasquim, tablóide de intenso combate à ditadura militar. Viveu o jornal do começo até seu final. O Pasquim não era só de acertos, diga-se de passagem, mas teve um papel importantíssimo na vida brasileira dos anos 1960 até parte dos 1980. 

Jornalismo, futebol, samba, marchinhas, carnaval. O Rio das ruas, das vielas e conversa fiada. O Rio dos acepipes e chopes dourados da felicidade. O Rio que passou em nossas vidas e teve momentos brilhantes. Tudo isso foi registrado pelo texto sagaz e pela fala apurada de Sérgio Cabral, a quem o Rio de Janeiro muito deve em termos de divulgação, valorização e protagonismo na vida nacional. O jornalista merece todas as loas por sua dedicação pelo Rio, a quem dedicou toda sua vida profissional até que as limitações de saúde se tornaram implacáveis. 

Deveria ser dia de homenagens a Sérgio Cabral no Teatro Municipal, no Teatro João Caetano e no Maracanã. Sergio merece: sua longa trajetória não foi em vão.

@pauloandel

Friday, July 12, 2024

Foi o tempo, só o tempo

Difícil as pessoas entenderem, tudo bem. Não é saudosismo, nem se negar a viver o presente. É apenas reconhecer as coisas que eram muito legais no passado, e que não voltam mais. Espiar os pais dormindo bem e depois ficar vendo TV na sala. Ter insônia no dia do acampamento dos escoteiros. Deitar e ficar na expectativa da pelada de areia no dia seguinte. E o frio na barriga de poder ir para o Maracanã, imagine? Aquele nervosismo por causa do vestibular, ou de passar de ano com boas notas. A expectativa de ver um filme esperado. Ih, e o encontro com a crush na praia? A turma de rua, gastando a noite com a boa e velha conversa fiada? Já pensou um showzão no Canecão? Não é saudosismo, mas apenas reconhecer que muitos momentos maravilhosos, mesmo simples, agora estão longe demais - e não há problema, porque a vida é assim mesmo.

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Era bem raro meus pais saírem à noite. Invariavelmente brigavam e não tinham grana. Mas aconteceu, sei lá como, num sábado à noite e, quando me dei conta, estava sozinho em casa. 

Fiquei esperando começar o Perdidos na Noite. Antes, preparei uma panela de ravioli só pra mim. Com pomarola à vontade. Foi uma noite especial.

Sunday, July 07, 2024

O morto-vivo de Copacabana

A mais estranha de todas as sensações é estar  num lugar que é tão familiar depois de tantos anos, mas ao mesmo tempo tem tantas diferenças num percurso que mal dá um quilômetro. 

Volte a Copacabana depois de quase trinta anos. A Babilônia Brasileira permanece intacta em sua riqueza multifacetada, cheia de cores, crenças, classes, comandos, turmas, gangues, mas é tudo diferente demais. Qualquer cinquentão pode ser um morto vivo refazendo o caminho das ruas, procurando endereços desaparecidos e revendo logradouros finados.

Passe pelo Shopping dos Antiquários, um ponto tradicional do bairro. Cadê o Supermercado Leão, a loteria do Seu Carlos - com mil escudos de times na parede - as papelarias com maravilhosos botões, o bar Bole-Bole - que tinha a pior almôndega de todos os tempos -, o Teatro Teresa Raquel? Cadê os transeuntes? Billy Blanco, Agildo Ribeiro, Jorge Cherques, Rodrigues Neto, Cauby Peixoto, Walmor Chagas, Regininha Poltergeist? As famosas lojas Lixo e Lixão, que ditaram moda nos tempos da repressão braba. Humm, e o fliperama na saída da Siqueira Campos? Nunca mais. E as Termas L'uomo? E o Magnetoscópio? E o grupo de escoteiros? O Copa D'or domina tudo! 

Descendo pela rua Tonelero, desapareceu a loja Cantinho Sonoro - das primeiras a vender CDs no país - e a papelaria Tia Dália - também um importante fornecedor de botões para jogar. Na esquina de Anita Garibaldi, faleceu a Casa Natale, com excelentes frios e importados. Bom, do outro lado da rua pelo menos o botequim e a padaria permanecem intactos. 

Vire à esquerda na Santa Clara e corte a Barata Ribeiro. Mais duas lembranças: a loja de brinquedos Dom Pixote e, bem em frente, a maravilhosa Massas Suprema - com pasteizinhos emocionantes. Se tivesse ficado na esquina anterior, além da casa de frutas veria as maravilhosas lojas de discos Billboard e Modern Sound, além do Cine Bruni Copacabana. 

O morto vivo para na esquina de Santa Clara com Avenida (Nossa Senhora de) Copacabana. Num breve giro de 360 graus, ele espia na memória a Casa Barbosa Freitas, a Cirandinha, o Cine Art Copacabana, o Metro Copacabana, a Casa Sloper, as Lojas Brasileiras - com a inesquecível pizza brotinho de muçarela - a Bonnie, a Casa Mattos, tudo pelos arredores. Ufa!  

Melhor voltar pela avenida no sentido dos carros e saber que a Charutaria Lolló se salvou - esteve para fechar, mas o novo dono foi heróico e ainda manteve os veteranos funcionários. Ou atravessar a rua, parar bem em frente à Galeria Menescal e olhar onde era o Gordon, lanchonete histórica dos anos 1960 a 1990 - tinha um canguru gigante na porta! - as crianças ficavam enlouquecidas ao vê-lo.

Figueiredo Magalhães. A outrora esquina mais barulhenta do planeta Terra (esférico). Na porta das Lojas Americanas tinha uma lanchonete que vendia cachorro quente e refresco de côco em copo de papel em cone, no tempo em que ali do lado o Cine Condor exibia "Sissi, a imperatriz" com a belíssima Romy Schneider. Voltando à avenida, a radical galeria Ritz com a Loja Promessa de vizinha. Depois Sapasso, Formosinho, Banespa e finalmente o Boni's, que mudou mas não muito. 

Do outro lado da rua, o Centro Comercial de Copacabana. A loja Disco do Dia abasteceu os corações de música pelos anos 1980. Mendel Chapiro tinha uma loja exclusiva de jeans no subsolo. No segundo andar havia uma lanchonete com excelente misto quente. No terceiro, a pioneira dos sex shops no Rio. E no prédio, as belas GPs atraíam os garotos para as festas do amor em quitinetes com divisórias, para a alegria do irreverente Ibrahim Sued, sempre fazendo graça com os jovens clientes saídos dos estabelecimentos sexuais. 

Ao morto vivo, um espírito que anda, resta sair do CCC, virar à direita em direção à praia, passar pela Churrascaria Carretão cheia de turistas e procurar pelo Rondinella na esquina com a Atlântica. Ali, o ator Percy Aires, ex-dono, deu muitos autógrafos para os clientes quando fazia sucesso na Globo, quando interpretava um general de pijama na novela das oito. 

Mais adiante, outras garotas inesquecíveis na Boite Bolero. Porém, somente em sonho. 

Três botequins mortos

Entre dezembro de 1983 e agosto de 1990, se passaram mais de dois mil dias. Em 90% deles eu dediquei pelo menos uma hora diária ao Sniff's, o mitológico botequim que ficava aos pés da escada rolante que levava ao Teatro Teresa Raquel, o Teresão, um dos símbolos da cultura nacional, hoje Teatro Claro. Foi uma fase muito importante da minha vida, dos 15 aos 22 anos, onde pude aprender muita coisa com os veteranos da área, rir de montão, chorar um pouco e infelizmente até brigar. Faz parte da vida. O mais incrível é que fui um frequentador de botequim praticamente sem consumir álcool: ficava na Coca-Cola e no suco de morango ao leite. Anos depois, incentivado por minha amiga Ana Elisa, acabei escrevendo um pocket book sobre o Sniff's, um dos que mais gostei de fazer. O boteco resistiu a planos econômicos, golpes de estado, inflação galopante, desemprego e o escambau, mas perdeu a batalha para o COVID-19. Vida que segue. 

Eu vivia no Sniff's porque meus amigos escoteiros - sim! - lá estavam diariamente. Depois, os maravilhosos personagens do bar eram uma atração à parte. Por fim, apareciam as celebridades artísticas e culturais por conta do Teresa Raquel, então estava formado o grande caldo cultural para boas conversas, muitas hilariantes e outras que chegavam à beira da porrada. Era nosso bar oficial. Não tinha nenhum atrativo que cativasse o público além da birita e do bom papo. Comer por lá, nem pensar. 

No circuito do Shopping dos Antiquários, que não tinha esse nome nos anos 1980, o Sniff's teve dois concorrentes por longo tempo, melhor dizendo, um - o outro durou menos. Eram o Bole-Bole e o Abílio, que tinha outro nome mas só o chamávamos pelo nome do dono, gente boa. O Abílio durou anos e anos, o Bole-Bole acabou nos anos 1980 mesmo. Ambos eram nossos points ocasionais, às vezes para prestigiar os outros comerciantes, noutras vezes em greve contra o Sniff's por algum motivo que nunca passava de dois dias. 

O Abílio ficava de um lado da grande e maravilhosa rampa circular do Shopping, bem em frente aos Supermercados Leão (onde tomávamos Ice Cream Soda nos sábados à tarde). Era um boteco simpático e nele os clientes comiam, ao contrário do Sniff's. Estava sempre cheio. Já o Bole-Bole ficava do outro lado, no outro corredor e estava sempre vazio. Era um refúgio de bebuns. Quem o comandava era Marieta, algo incomum para uma mulher naqueles tempos, onde volta e meia recebia alguma cantada dos fregueses. Quando o cidadão passava do ponto, ela dizia barbaridades sexuais que deixavam todo mundo sem graça e o assunto morria. 

O Bole-Bole era famoso por seus acepipes trash e uma pimenta que assustava todo mundo, mas devia ajudar a encarar os pratos. Em certa ocasião, nossos amigos João e Jésus fizeram uma aposta: o primeiro pagaria uma grana se o segundo encarasse uma almôndega do bar com uma pimenta quadrada aterrorizante. De olho na bufunfa, Jésus pegou o pratinho com duas almôndegas estilo semana passada. Abriu o garrafão, tacou a pimenta e mordeu. Ficou impassível, mas não conseguiu esconder as lágrimas quando mordeu a pimenta. 

João só ria. 

Friday, July 05, 2024

Bolinha, eu e MJ

Meu amigo Bolinha já esteve comigo em tantos lugares que, desta vez, nem parecia algo inédito. Foram bares, bares, bares, hall da faculdade, viagens, jogos, locais proibidos pela moral e pelos bons costumes, cemitérios, camelódromos, buracos variados. Agora, definitivamente o tempo passou: combinamos de ir juntos ao cardiologista. Cogitei até um adiamento; afinal tinha o sensacional jogo da seleção...quem? Uma gatinha do meu trabalho me disse que o médico era mais importante do que futebol. Não concordei, mas achei melhor ir. Estranhos os caminhos do ser humano.

Não gosto de médicos. Melhor dizendo, não gosto de certa frieza que contamina a classe médica no atendimento ao próximo. Talvez seja algum trauma de tanto ter acompanhado minha mãe a clínicas. Ou meu pai, que passou um ano internado. Ou o Xuru. Ou o Fred. Não gosto. Ironicamente, comecei minha vida profissional em um hospital: o garboso Philippe Pinel, em Botafogo. Já se foram quase vinte anos. O tempo passou.

Simpática a moça do eletrocardiograma. Tinha algo de kraftwerkiano naquilo. Não posso morrer agora: tenho que pagar dívidas, escrever livros, amar uma mulher linda e voltar a ver o Fluminense campeão do mundo. Hoje é dia vinte e cinco de junho, uma data sempre especial, inesquecível e, até bem pouco tempo, cercada somente de alegria: aniversário de uma das mulheres mais bonitas, charmosas e simpáticas que conheci na Terra, Luciene Magnani. E claro, o dia marcado pela maior conquista da história Tricolor no Maracanã, maior até do que o campeonato mundial de 1952 ou o bi de Assis: o título do Centenário, com o gol de Renato. Não morrerei. Estatística serve para isso: ler gráficos. Há estabilidade no eletro. Ufa.

Simpático o Doutor Mário. Parece com alguém que conheço, mas não lembro. Parece jovem para um médico que cuida da mãe do Bola. O primeiro cardiologista que faço rir. Achou engraçado que Bola tivesse marcado minha consulta. Expliquei: somos amigos há vinte anos; não gostamos de médico; não formamos um casal gay; gostamos de mulher, inclusive feia (Bola, muito mais do que eu); achamos bom que dois gordos fossem se consultar seguidamente – isso poderia aplacar a ira do doutor para com os de peso. Ele riu. Passou os exames chatos de sempre. Pulso normal, coração normal, um remedinho. Meu IMC nem está ruim como se poderia imaginar. Raras vezes me senti tão bem em um ambiente tão hostil. Bola também foi bem. O tempo passou.

Há muito não navegávamos pelos bares do Méier, onde não se bobéier. Tem algo ali de Alexandre Machado. Tem algo da Magnani. Algo de Sonia Chrystina. E, claro, do inusitado Alvaro Doria. Algo de Copacabana na Dias da Cruz, da avenida Copacabana entre Figueiredo de Magalhães e Siqueira Campos, para os que me entendem. Fomos felizes. É bom não estar à beira da morte numa consulta hospitalar.

Cabia uma comemoração.

Somos gordos sem-vergonha, irrereventes e suficientemente desajustados para entrar no rodízio de pizzas da Parmê, minutos após termos sido absolvidos pelo Doutor Mário. Poderíamos ter sido salvos se prevalecesse a pão-durice do Bola, reclamando do preço abusivo para se comer trinta fatias de pizza e beber hectolitros de refrigerante de cola. Rapidamente, o empurrei para dentro do restaurante.

Nossa vida tem sempre algo engraçado.

Antes das fatias, rápida passada pelos cedês das Americanas, no shopping. Não resisti a um Led Zeppelin, mesmo com “Stairway to heaven”. Dez pratas. Bola é meu amigo, mas é pão-duro; Seal estava de grátis, ele pegou... mas refutou. Tio Patinhas! A garota no caixa era uma morena bela; quando tentei pagar, ela falava ao telefone e parecia delicadamente sexy; enquanto isso, Bola se abaixava para pegar um DVD de Michael Jackson que estava no chão e que, involuntariamente, havia pisado em cima:

- Que é isso, mano, quer pisar no Michael?

- Pó, cara, ele tá caidinho.

Risos tolos, feito os dos tempos da faculdade. Nem sabíamos do que acontecia do outro lado da América.

Parmê. Uma morena jovem, linda, fofinha e grávida. Uma turma de adolescentes em festa. Gritos, risos, gente. E falamos da vida, do amor, do passado, de como foi bom rever Dino no Orkut. Nem tudo florido: também dizer sobre os que considerávamos amigos, que se afastaram.

Foi divertido. Bom viver os pequenos prazeres da vida. E descobri algo inédito: ir ao médico com um grande amigo pode ser menos incomodativo. Coisas boas acabam cedo. Hora de voltar para casa. Ouvir Jimmy Page. Pensar no dia seguinte.

Veio um 239, o motorista não parou. Eu estava no ponto errado, de forma que o considero absolvido. Mas esperei outro vir. Cinco minutos, chegou. Vazio. Antes disso, falei com um rapaz que estudou Direito comigo, Guilherme. Coisa rápida, um olá, um abraço. O fiscal libera, o coletivo parte rumo à Marechal Rondon, zona de tensão da vida carioca. E tocou o telefone. Eu queria que fosse a Tati, ou saber notícias do Leo, ou alguma palhaçada do Zé. Era o Bolinha, em tom assustado e impactado:

- Cara, Michael Jackson morreu!

Levei um soco.



Pequenas lembranças às quatro da manhã

 1) Em 1991 ou 1992 fomos eu e meu amigo Sérgio ver "O pescador de ilusões" no cinema do Rio Sul. Era um tempo em que eu não ficava 15 dias sem ir ao cinema, meu Deus. Robin Williams arrebentava num filme atrás do outro, sem parar. Enfim, ser jovem no comecinho dos anos 1990.

Fizemos faculdade juntos. Éramos muito diferentes mas vínhamos do mesmo berço: Copacabana. Nos juntamos de imediato e formamos uma turma maneira, que durou vários anos. Um dia brigamos feio por nada e nunca mais nos vimos. Uma bobagem que talvez não acontecesse na maturidade. Vivemos tantas histórias divertidas juntos que, até hoje, perguntam a um pelo outro. Ótimas histórias.

2) Engraçado que Vanessa me mandou mensagem há pouco, falando da Ana Paula, nossa querida, que apelidamos de Marisa Monte por seu então cabelão preto. Isso ainda tão vivo em nós, depois de tanto tempo - falo de 1990, 1991, trinta e poucos anos. Vanessa é admirável, sempre foi. 

Monday, July 01, 2024

Gerald Thomas, 70

Sou um completo leigo na arte teatral. Um intuitivo, que tenta mergulhar no universo da ribalta. Isso não me impede de celebrar um ídolo que acaba de completar 70 anos: Gerald Thomas.

Eu ainda era garoto quando as peças de Gerald causavam furor no Rio de Janeiro e em todos os lugares do mundo onde eram encenadas - mesmo. Eventos arrebatadores, espetáculos sold-out. Desde fins dos anos 1980, sabíamos de alguma forma que Gerald Thomas era a nossa potência vanguardista do teatro, ao lado de figuras também gigantescas como Zé Celso Martinez Corrêa. 

Qual seria o motivo de tal fascínio? Bom, como autor, diretor e artista gráfico, Gerald atira em todas as direções - inclusive como ator: basta ver as inúmeras vezes que confundiu jornalistas em entrevistas, falando coisas muito sérias que foram tidas como brincadeira, e outras que eram claras brincadeiras, mas tidas como coisa muito séria.

Desde criança, leu tudo, tudo o que podia. Ainda garoto, foi modelo e conheceu o wild side de Copacabana e Nova York.

Eis a ficha de Gerald no Museu da Pessoa: "Gerald Thomas Sievers nasceu em Nova York, em 1957. Filho de pai alemão e mãe galesa, Gerald morou até os 7 anos em sua cidade natal. Migrou com a família para o Rio de Janeiro, onde começou seus estudos de artes com Ivan Serpa e Hélio Oiticica. Aos 13 anos a família voltou a morar nos Estados Unidos, mas por falta de adaptação retorna no ano seguinte ao Rio de Janeiro. Aos 14 Gerald vai morar em Nova York com o artista plástico Hélio Oiticica. Aos 16 muda-se para Londres e casa-se com a bailarina Jill Francis Drower. Em Londres estuda na London Education Authority e começa a trabalhar com teatro. Volta então a morar em Nova York e constrói uma carreira meteórica como diretor teatral. Autor, produtor e diretor de várias peças teatrais, Gerald revolucionou o teatro brasileiro."