Monday, March 04, 2024

Saudades da graça

Lá pelos tempos de oitenta e nove, coisa de uns dezessete anos, eu era apenas um rapaz latino-americano, sem parentes importantes e nativo da Nova York brasileira, Copacabana. Uma década antes, eu gargalhava sozinho ao ler os textos de Ivan Lessa no então vivo Pasquim, e sentia-me chateado porque nenhum outro amigo sabia sequer do que eu ria com o jornal de “oposição”, assim falavam. Adorava os palavrões, os insultos aos leitores, tudo coisas que eu não tinha a plena noção, assim como a de que Ivan é um gênio e que, se um dia eu aprender a escrever direito, devo tudo a ele, velho Ivan.


Volto aos oitenta, quase noventa. Uma dureza danada, começo de faculdade, pai contra, dificuldades. Houve um dia em que paralisaram a faculdade, voltei para casa, perto de nove da manhã, resolvi caminhar pela beira do mar em dia nublado. Desci a Figueiredo velha de guerra, rumo ao Sumol, esquina com Barata Ribeiro, Varese em frente, lanchódromo do bairro ao lado de próceres como o Gordon e o popular Cervantes. Provavelmente Ferôncio e Luiz estariam jogando bola, Rubinho ao menos. Antes de pedir meu tradicional eggcheeseburger, vi um carro parado, não sei se uma Brasília, daquelas que os Mamonas iriam imortalizar anos depois. Fato era o de ser um carro da antiga. Quando olho para o motorista, me vem uma sonora gargalhada, uma seqüência delas – o interlocutor, melhor, interobservador retrucou-me com risos idem, e não trocamos uma palavra, até que o carro partiu e eu cheguei ao balcão para pedir o sanduíche.

Era Bussunda.

Não se tratava de uma celebridade televisiva, mas já tinha seu fan club. Ano antes, tinham feito um show histórico no Circo Voador, em campanha para o macaco Tião, hóspede do zoológico e candidato informal a prefeito que conseguiu medalha de prata no pleito – Xuru foi ao show e fez campanha para o Macaco Tião; adorava contar que Bussunda tinha sido jurado em um concurso do qual ele, Xuru, tinha participando como...vocalista da Troncomóvel Band. Redator de um programa de tevê que tinha acabado de alcançar índices alarmantes de audiência, a TV Pirata. Engraçadíssimo, pois. Escrevia também numa revista sensacional, a Casseta Popular, que fez – merecidamente - gato e sapato de Collor. Vendiam camisetas com deboche e cartuns marcantes, frases, comprei duas para Alessandra e uma para Klein.

Tempos depois, fizeram outro show hilário no Teatro Ipanema, todos vestidos de Leopardos, Luizinho me chamou para ir. Bussunda, em certo momento, causava alvoroço de risos na platéia – imitava simplesmente Deus numa parte da peça, caminhando por entre os expectadores, com seu sorriso ímpar, sem dizer uma só palavra.

Universidade do Estado, 1991. Show de Oswaldo Montenegro para a TVE, beta-boca com um aluno, OM irou-se, referência ao fato de Bussunda ter comentado no Salão Carioca de Humor, na Santa Úrsula, que o “Museu do Babaca” ia ser inaugurado no Casseta Shopping Show, simpático bar da rua Paulino Fernandes...com um móbile em tamanho natural do trovador citado, na porta.

Com o passar dos tempos, a turba toda se reuniu, a Casseta Popular, o Planeta Diário – maravilhoso, com suas manchetes surreais. Livros, discos, programa em horário nobre, virou indústria das boas. Fiquei sabendo que alguns dos membros da turma foram estagiários do Pasquim – e conseqüentemente, do Ivan, que muito inspira muito do que fizeram de melhor.

Os veteranos da Uerj que divertiram-se a valer nos folguedos e eventos promovidos pelo alto clero estudantil do Instituto de Matemática deve, em algum momento, ter percebido a influência Bussundiana no grupo. Tivemos um grupo de humoristas famoso por lá, hoje finado, chamado Cecrime e que nada tinha a ver com crime, só com gargalhadas.

Não gostei quando Bussunda resolveu distratar o Fluminense em suas crônicas esportivas – ressalte-se, eu e uns dois milhões de torcedores que muito o xingaram. Pediu desculpas: era craque, percebeu que o humor tinha extrapolado a conta. A vida seguiu, sem mágoas. Bem disse Rinus Michels, também desaparecido, que era e é, sempre, somente mais um jogo de futebol. Enquanto isso, os Cassetas fizeram as turbas rirem e rirem.

Vem uma bobagem e splaft! Tira o Bussunda do caminho. Muito antes dos acréscimos do árbitro. Errradamente. Esse negócio do grande palhaço, do humorista, morrer antes da hora, dá um gosto de cabo de guarda-chuva danado. Parece que a festa não vai ter vela soprada porque o aniversariante não veio.

Eu, sabe-se lá porque, recentemente voltei a ver os Cassetas antes do outro programa de terça, que considero muito bom, coisa deste ano. Dia desses, vi um quadro divertido e fiquei recordando, meus flashbacks imaginários na cachola, dos tempos do Casseta Shopping Show. Tempos do Collor, quando achávamos que a coisa ia dar certo, pobres de nós....Tempos da faculdade, que voam ligeiros e não deixam rastros. Tempos da Alessandra e da Klein.

Luizinho foi embora. Xuru, idem. Cecrime, ausente. Bussunda também.

O Sumol já não é mais o mesmo. Não posso ir mais à praia de manhã. Não tem mais nenhum motorista gargalhando na esquina.

Tenho saudades da graça.

(originalmente publicado em julho de 2006)

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