Sunday, December 10, 2023

historietas de vida ou morte

1

Não tenha dúvidas: os mesmos filhosdasputas que te negam a mão, o abraço ou a ajuda, serão os mesmos que irão chorar em público caso você morra, especialmente se for de modo súbito, inesperado, ou por suicídio. Vão chorar, lamentar, dizer que você era muito bom, que será insubstituível, vão dizer que é muito injusto. Na verdade eles não vão chorar por você, mas sim por se lembrarem da própria escrotidão. Eles não estão nem aí que você morra ou não. Nem aí. 

2

É assustador quando você se dá conta de que, embora não seja tão velho mas já tenha uma certa estrada, praticamente todos os seus grandes amigos, verdadeiros amigos - não colegas, amigos mesmo com os quais pode contar em qualquer situação - estão mortos. Definitivamente mortos. Você se lembra das conversas, das brincadeiras, das barras pesadas, de tantas histórias e num segundo um dedão cutuca seu ombro ao mesmo tempo em que surge uma voz imaginária: "Ei, são só lembranças. Divirta-se, mas não se esqueça: eles estão mortos". E essa talvez seja a mais dolorosa e desesperadora das verdades do mundo. 

Existe muita ignorância a respeito do suicídio e dos potenciais suicidas. Nos tempos modernos, o que importa é o lugar de fala, não é? Ok, eu o tenho. Em 1984, aos 15 anos, eu abri o gás do apartamento onde morava e, por algum impulso inexplicável, já um pouco tonto com o cheiro forte, desliguei. Desisti sem pensar. Eu tinha motivos para prosseguir e para parar, e não dá nem para dizer que foi o medo, no máximo o instinto. Meus pais morreram sem saber disso, meus amigos de verdade - aqueles mortos - também não souberam. Não ter morrido significou salvar minha família entre 1995 e 2008, época em que meus pais adoeceram progressivamente até a morte. Eu segurei a barra. Agora, ninguém vai fazer isso por mim e, vivendo agora os piores anos da minha vida - o que chega a ser incrível, pensando em tantas outras épocas ruins - tenho pensado em suicídio diariamente há mais um ano. Isso não me impediu de fazer coisas boas, trabalhar, produzir, ajudar muita gente (sem contrapartida), amar, rir, talvez ser amado. É um velho desafio que tem quase quarenta anos: eu e o suicídio, um de frente para o outro, um vai derrotar o outro, ninguém sabe ao certo o dia ou o resultado. 

Quase todos os reacionários que conheci eram - e/ou são - incapazes em enxergar o mundo à sua volta. Geralmente partiam da premissa de suas experiências pessoais, sem perceber o quanto foram privilegiados num mundo onde mais de um bilhão de pessoas não tem sequer água. E justamente por causa das premissas pessoais, invariavelmente eles ofereciam uma, digamos,  supervalorização de seus feitos pessoais, mesmo que fossem coisas sem a menor importância. 

A maioria era de homens e mulheres bons, só que incapazes de perceber que a sociedade vai muito além da própria família, do condomínio e da rua, e que isso não se resolve só com o mercado e investimentos. Em condições normais, indignar-se com a fome, a miséria e a violência deveria ser uma obrigação coletiva, mas aí está o problema: pelo menos no Brasil, a coletividade é quase sempre desprezada.

Todas as vezes em que, com alguns deles, debati estas questões, a resposta foi o silêncio. Nenhum deles parou para pensar que o desprezo aos excluídos levava a muitas e muitas mortes, vide a questão da COVID 19 por exemplo. Continuo achando que não era má fé, mas simplesmente uma incapacidade de refletir a respeito.

5

Ao mesmo tempo em que acho que há muito a ser feito, também penso que o melhor já passou, que a situação é grave demais e, se nada mudar para melhor nos próximos dias, a única saída é ir embora.

6

Não existe democracia de verdade com crianças fuzilada na rua, calçadas cheias de gente morrendo a céu aberto e o ódio plantado em cada esquina. 

Não adianta que os mais abastados simplesmente fiquem em ilhas isoladas, desprezando o resto.

Um dia a conta chega. Aliás, já chegou. Não adianta fingir nem fazer cara de paisagem.


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