Monday, June 19, 2023

Uma canção para Tom Waits

Quem tem paz? É difícil demais. Nesta noite gelada, de muito sofrimento no Rio, um cobertor pode salvar uma vida. Um chocolate quente. Um prato de boa sopa. Uma roupa digna. Tudo isso falta e deveria ser indigno achar isso normal, mas muitos o fazem por meio de um procurador: Deus. Deus quis assim, Deus quer assado. É uma farsa e uma covardia atribuir a Deus a escrotidão dos seres humanos. Mas seguimos assim. Eu, por exemplo, nunca tive paz por mais de uma semana: sempre houve problemas feito cordas em meu pescoço, os mais diversos, então cheguei aqui meio sem planos ou rumo, perdido na multidão, sem pai nem mãe. Além de tudo eu sou vítima da gordofobia, taquepariu: logo eu, que joguei muita bola na praia, que treinei tanto para a São Silvestre na madrugada, fiquei gordo demais. E sempre que posso eu como mesmo, porque já vi muitos sanduíches e salgados na vida que não pude comer, ora por estar duro, ora por precisar economizar, ora para sustentar minha família. Então agora que eu ando no fio da navalha, se puder como bastante. E daí que fiquei gordo? Ninguém precisa gostar de mim, nem do meu corpo: quem fazia isso foi embora ou já morreu! Mas minha barriga não importa, eu quero falar que ainda sonho com uma semana de paz antes de morrer, um mês, já pensou um ano? A paz. Paz. Ter onde morar, ter comida, algumas roupas razoáveis, os livros, os cds, os botões e um smartphone com wi-fi é o que basta. Tanto faz o lugar: eu nunca mais vou voltar para casa como gostaria, qualquer casa serve. Queria paz. Andar na rua e ver as pessoas em paz, com algum conforto. Entrar na fila do restaurante e fazer meu prato em paz. Comer, pagar, caminhar e passear numa tarde de paz. Admirar respeitosamente a beleza de uma garota que passa em paz. Ver lojas abertas com pessoas trabalhando tranquilamente. Carros passando sem se fecharem como se quisessem trocar socos. As calçadas limpas, sem sofrimento debaixo das marquises. As crianças passando tranquilas. A paz é a grande fortuna e não é preciso ser milionário para tê-la, mas é impossível tê-la passando fome, miséria, dor, doença e violência. A paz chama abraços e sorrisos, tudo ao contrário dessa cidade cabisbaixa, cheia de silêncios e desertos urbanos. Não existe paz com abandono. Não existe paz com falsidade. Quem tem paz? É difícil demais. Nesta noite gelada, de muito sofrimento no Rio, a paz é escassa demais. Hoje um homem chorou sua jovem esposa morta pela polícia. Hoje traficantes e milicianos estupraram, agrediram e mataram. Hoje há bêbados e crackers miseráveis esperando a morte chegar nas ruas e ela, tão filhadaput@, demora a vir para que sofram mais. Hoje eu tenho dor e desespero, mas não há nada a ser feito porque todas as poucas pessoas que eram tão minhas estão longe ou completamente mortas, mortas, mesmo que eu pense nelas o tempo inteiro. Então escrevo para aliviar minha dor infinita, para suportar melhor a estadia neste lugar estranho e hostil, enquanto sonho com o impossível: um ano de paz, algo que nunca tive nem nos melhores momentos de minha vida. E quem tem a verdadeira paz? Quem finge tê-la? Quem confunde paz com felicidade? Esta é uma segunda-feira gelada no Rio, uma cidade de silêncios, desertos urbanos, opressão, miséria e crimes pavorosos. Quem será que se preocupa com isso? Ninguém, meu senhor, é cada um por si e Deus está do lado de quem vai vencer. A cidade não tem paz, é que as pessoas não têm paz nem quando na TV Chaka Khan canta Joni Mitchell. Nem Chico Buarque tem paz. O Fluminense não tem paz, senhor. Imagine os humilhados na linha de trem do Jacarezinho. Imagine o breu profundo da Automóvel Clube toda escura, com um camburão nas sombras. Imagine a garotinha procurando comida na lata de lixo. Há paz ou vivemos uma grande farsa protegida pela nossa escrotidão e egoísmo? Isso é voluntarismo, filhadaput@? Não. É dignidade, caráter, amor ao próximo, tudo que é tão desprezado nessa máquina de moer carne chamada sociedade de consumo. Agora vou descansar. Eu não conheço a paz e a espero, nem que seja pelo gracioso beijo da morte. Tudo é inútil. 

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*Contém citação de "O senhor da guerra", Renato Russo.

**Literatura não precisa ser autobiografia.

***Em vez de escrever "fique bem" ou "se cuida", é mais útil comprar meu livro novo. 

@p.r.andel

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