Tuesday, April 11, 2023

João do Rio, 102 anos depois

(reprise)

Gomes Freire, Lavradio, Inválidos e arredores, duas da tarde de quarta-feira. Há exatos cem anos, esta região e a capital da República pararam, porque morrera João do Rio enquanto as ruas fervilhavam pela perda. Hoje, o Centro mal tem trânsito, as lojas morreram pela decadência econômica que já vinha antes da covid19 e piorou. Outro brilhante escritor, Jack Kerouac, veria aqui o mesmo cheiro de rua triste que encontrou ao escrever "Cenas de Nova York". 

Pelas ruas do Centro, o progresso e a miséria se esbarravam naquele tempo. Os cafés abarrotados, o ir e vir das gentes, enquanto ao largo dos caminhos os excluídos pediam socorro. A história se repete em 2023, mas não se sabe ainda do progresso que abraçará o Rio devastado. Tempos atrás, votaram o projeto que faria o Centro renascer, mas por enquanto é só um disfarce para que as construtoras possam operar de novo em Copacabana, Ipanema e Tijuca. 

João do Rio viveu apenas 39 anos, mas que valeram por 80. De forma avassaladora, ele não apenas inventou o jornalismo formal carioca, mas foi o grande cronista fotográfico da cidade, do céu ao inferno, escrevendo de forma avassaladora e perene - seus textos continuam atualíssimos . E foi ele quem abriu o mundo para Ipanema numa crônica (que pode ter sido encomendada) sobre as maravilhas lunares do então areal. Como se sabe, deu certo. 

Estima-se que a morte de João do Rio tenha levado mais de 100 mil pessoas às ruas para seu cortejo fúnebre. Até hoje está no rol das grandes comoções cariocas, só não batendo a do Barão do Rio Branco, ocorrida antes. O próprio Barão vetou as pretensões de João do Rio em integrar a diplomacia, pois o candidato incorporava três vertentes que o preconceito não perdoa: obeso, negro e homossexual. Todas continuam em voga, horrorizado e humilhando a alma brasileira, mas os planos do Barão em ter um corpo diplomático 100% heterossexual já foram abaixo há tempos...

Ao mesmo tempo, não há como não pensar: há cem anos, um homem gordo, negro e gay parou a capital do Brasil pela força de sua importância, de seu talento, independentemente de suas relações com o poder constituído. João do Rio ganhou o país com seu texto e, depois deles, muitos foram os craques que se consagraram por seus escritos em jornais. Ok, nenhum deles teve um velório com cem mil pessoas, mas não se pode ganhar todas. 

Mais de cem anos depois, o Rio agoniza e estende as mãos nas calçadas, dorme debaixo das marquises e revira latas vazias de lixo desesperadamente. Não há vagas. Os ricos estão mais ricos, enquanto os pobres estão cada vez mais humilhados. A busca pelas manchetes nas bancas foi trocada por vídeos de dancinhas no celular. Ainda estão rolando os dados, mas é difícil crer que todos caiam com a face seis para cima. Resta sonhar com uma reconstrução que não faz parte dos planos empresariais, o que está evidente nestes últimos tempos. 

Em algum lugar do imaginário, João do Rio desce a Gomes Freire saudando os transeuntes. Depois vira na Senado e, a seguir, na Lavradio, onde para para almoçar no Mangue Seco lotado, cheio de cavalheiros e damas elegantes, que ele aprecia de esguelha. Quando terminar a refeição, ele caminhará pela Praça Tiradentes em busca do esplendor perdido da região, aproveitando para pescar alguns livros nos sebos da região e especialmente  em um, que funciona no Edifício Riqueza e é cheio de livros sobre a cidade. No sexto andar há uma loja pequenina, humílima e abarrotada, onde ele pode tomar um café, conversar com os livreiros, apreciar a chegada de um famoso cineasta, escutar a fala rouca de um jornalista e, finalmente, ficar a par das novidades musicais pós-Pixinguinha, tudo enquanto espia a bela vista da praça à janela. 

O que nos resta é sonhar. 

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