Sunday, April 30, 2023

Até a casa de Katia

Saio da estação do metrô Siqueira Campos e, em trinta ou quarenta passos, depois de olhar a placa da rua Tenreiro Aranha - a vila, onde estudei e joguei bola entre 1978 e 1980 - e pensar no que já não existe, entro no Shopping dos Antiquários. Meu objetivo é fazer meia horinha até encontrar com Kátia, minha querida amiga que é um símbolo do bairro. 

Passo pelos corredores, venho e volto. Do meu tempo de criança, 95% das lojas são outras, mas é incrível como o espírito de antigamente permanece ali. Tem algo vintage, kitsch e elegante ao mesmo tempo, como determina a liturgia de Copacabana. Não tem mais a loteria do Seu Carlos, com dezenas de escudinhos de times de futebol na parede, nem os Supermercados Leão - com ice cream soda na lanchonete -, nem o Bar Bole-Bole, o Abílio e nem o antológico Sniff's, mas o Casilhas segue lotado no corredor da Siqueira Campos, agora com mesinhas. Mais lotada ainda fica a Adega Pérola, do outro lado da rua. 

Num dos corredores do shopping está rolando um vernissage. Umas trinta pessoas, comes e bebes, burburinho. Viva a arte, ali é um bom lugar. 

Perto dele, está o fabuloso sebo L.O.Matta, fechado pelo horário. Tem uma grande quantidade de LPs e CDs interessantes, livros também, menos os de futebol - parece que ninguém liga para o tema. O Matta fica aos pés da escada rolante que leva ao Teatro Net, palco de grandes apresentações da MPB desde o tempo em que se chamava Teresa Raquel - bem perto dele, funcionava o estúdio do maestro Arthur Verocai, ícone da nossa arte. E a mesma escada rolante, que antigamente não funcionava, serviu para a subida de inúmeros grandes artistas brasileiros, de Gilberto Gil a Lennie Dale.

Voltando para a porta do Extra, sucessor dos Supermercados Leão. Bem em frente há dois quiosques. Um vende doces maravilhosos, bomba, quindim e o outro vende queijos, salames, frios. Delícias nem tão caras para quem tem um bom emprego, mas caras demais para 95% dos transeuntes - e ainda assim dão lucro, porque estão ali há tempos. 

Dou meia volta e resolvo espiar a lateral de fora, com saída na rua Joseph Bloch. Quanta coisa legal da minha vida vem dali! O Leo e o Rubinho, a Cissa, a loja do pai do Cassiano - agora ela virou um bar lotado. Não tem mais o Teatro de Arena. Então vem a porta do estacionamento que fica no subsolo e penso que, apesar de ter morado ali por mais de dezesseis anos, raras vezes fui à garagem. Hum, e quando a Dona Célia me levava para lanchar cachorro quente no Aterro com o Adão, meu amigo e seu filho? Ela ligava o Fusca e a gente se sentia numa verdadeira viagem. O percurso do Shopping até o Flamengo é de poucos quilômetros, mas a vista da Enseada de Botafogo e do Pão de Açúcar é inebriante desde sempre, enlouquecedora. Esses lanches no Aterro têm 45 anos. Ah, o tempo.

Na esquina fica o Copa Star, onde as celebridades do Rio costumam se despedir. Parece um hotel de luxo. Grandes carros, sobrenomes estrangeiros e aí já passou o tempo de ir à casa de Kátia. Até o começo da Barata Ribeiro ainda terei muito tempo para abrir a cortina do passado, sonhando com meu tempo humilde que ficou para trás, mas que de alguma maneira resiste na memória. 

Monday, April 24, 2023

Seis da tarde

Avenida Chile, coração da cidade, seis da tarde é chegada a hora do rush e o sol já se pôs no outono. As pessoas deixam seus postos de trabalho e tomam o caminho de casa, ou de outros compromissos após o expediente, quase todas tão apressadas que sequer notam a belíssima paisagem composta pelo azulado nem tão claro do céu em contraste com a Catedral Metropolitana e o prédio da Petrobras, um marco da capital e também conhecido pela sigla “Edise” (de edifício-sede). A corrida para encontrar a pessoa amada em casa, rever os filhos, arrumar a casa, calcular as contas ou mesmo descansar depois de um dia de trabalho intenso – embora os trabalhadores comemorem, pois no atual cenário do Brasil, quem tem emprego, ainda que precário, possui motivos de sobra para felicidade – o Rio de Janeiro é um mar de desempregados por todos os lados, de quase todas as classes, cores  e crenças.

De toda forma, o desenho do céu entrecortado pelos dois edifícios merece atenção, ao mesmo tempo em que o formigueiro humano dispara pela parte alta da Avenida Chile, geralmente em direção à Avenida Rio Branco e mais especificamente ao acesso lateral do Metrô Carioca. 

Jovens garotas entre 20 e 35 anos, com saltos altos, roupas elegantes, maquiagem, cabelos louros ou com luzes, iPhones e outros dispositivos eletrônicos, música nos fones de ouvido. Andam em duplas, trios, às vezes quatro mulheres.

Homens da mesma faixa etária, geralmente com vestuário padrão: sapatos escuros, calças de cores neutras, camisas de botão azuladas ou marrons ou da cor bege, discretas, com mangas curtas ou compridas. Cabelos curtos, cavanhaques delineados (quando é o caso), iPhones, música nos fones de ouvido. Sempre em grupos, que podem ser pequenos (até quatro sujeitos) ou grandes (um bando). 

Naturalmente, há exceções: uma pequena parte da turma vai atrás do chope dourado da felicidade em locais próximos, como a boa e velha Cinelândia do Amarelinho e dos arredores do Teatro Rival, sempre movimentado com intensa programação, além de ter a diretora mais linda e talentosa da cidade, Leandra Leal. Agora, com certo sentimento de segurança local, provocado pela patrulha do Centro Presente, alguns ousam cortar o bairro a pé até a Praça XV, em busca do Arco do Teles. No entanto, é possível perceber que muita gente vai embora mesmo, o que se compreende por conta de tudo o que tem acontecido com a Cidade Maravilhosa, deveras impactada pelo caos da corrupção que, somada ao golpismo de outrora, ceifou boa parte da nossa economia, espalhando o desemprego e incrementando a violência (que nunca foi fácil antes, sejamos sinceros, porém piorou muito).

Um cheiro forte de pipoca doce atravessa o caminho dos pedestres apressados e alguns não resistem a um pacote. Sorte do pipoqueiro que ali exerce seu digno ofício, batalhando a sobrevivência. Ao lado, uma banca de balas e jornais, uma promoção de MM’s, as garotas ficam loucas com aquilo. Ainda há um tom doce no outono do coração do Rio. 


Sunday, April 16, 2023

Onde estará meu pai?

Nós vivemos juntos por 39 anos, quase 40. Fomos ao céu e ao inferno. Brigamos, choramos, rimos, dissemos coisas duras, sofremos (muito) e deveríamos ter vivido muito melhor do que vivemos, mas era o que tínhamos e assim foi. A ditadura não deixou que fosse melhor. 

Eu achava meu pai grandão e isso continuou até depois de eu ter ficado um pouco mais alto do que ele. Aliás, continuou a vida inteira. 

Era de poucas palavras, mas às vezes tagarelava. Ria. Contava coisas engraçadas. 

Durante muito tempo o álcool criou uma barreira insuportável entre nós, mas só a maturidade me permitiu entender a tragédia que também me vitimou. Quando meu tio foi expulso do Brasil pela ditadura, meu pai entrou em depressão - à época, tida como frescura. Eles já haviam sofrido muito, perderam os pais ainda crianças, foram criados em colégio interno e uma pergunta é inevitável: para que servia a família deles? Enfim, a separação do irmão e as dificuldades nos negócios, durante o milagre econômico que só abençoava alguns, o levaram ao alcoolismo e daí veio uma fase muito difícil para nós, eu e minha mãe, que se estendeu da minha infância à jovem idade adulta. 

Numa luta danada, consegui me formar e arranjei um emprego, mas os anos duros cobraram a conta: meu pai ficou doente e parou de trabalhar. Pior: parou de andar. Apesar de tudo, vivíamos uma vida razoável, apertada de grana mas com aquela sensação de família que, de alguma forma, está ali junta. Era meu conforto chegar em casa à noite e vê-los, eles e meu irmão. Dava uma sensação de dever cumprido. 

Meu pai me cercou de livros, jornais e revistas desde pequeno. Era tudo natural para mim, até folhear jornais incompatíveis com minha idade, caso do Pasquim. Foi desse jeito num apartamento de 300 metros quadrados e, a seguir, num de 30 metros. Com ele, aprendi o significado de Fluminense e o carreguei para sempre. Entre 1976 e 1982, fomos a muitos jogos juntos. O Maracanã era minha vida e meu pai, o guia. 

Conhecia muita música. Embora tivesse predileção pelo sertanejo tradicional dos tempos de infância, gostava de sambistas da antiga, da Bossa Nova, de Jorge Ben e Simonal. Elis, Simone, Elizete. 

Conhecia tudo do Rio. A noite, os points, o underground. Nada lhe era alheio, das altas rodas aos bafafás. 

Lia todos os jornais possíveis, acompanhava o rádio e a TV, era obcecado por notícias. Informação o tempo todo. 

E futebol, futebol, futebol! Às vezes via ou ouvia outros esportes, mas o grande lance estava no jogo de bolapé. 

Aos poucos fomos nos aproximando sob distância regulamentar. Na verdade, sempre estivemos perto. Eu não tinha como entender sua tristeza, nem ele a minha. Quando minha mãe morreu, nossa única válvula de escape foi conversar todo dia. Infelizmente o tempo foi curto, porque ele faleceu um ano e quatro meses depois, mas ainda tivemos tempo de comer bons lanches, falar de música, comemorar a Copa do Brasil de 2007 e sonhar com o futuro. Tão novo, acabara de fazer 67. 

Quinze anos depois, ele faz uma falta tão grande que só de pensar minha cabeça explode. Eu o procuro num Maracanã que já não existe, num botequim que foi todo remodelado, numa calçada que não tem ninguém. Onde estará meu pai? Não sei, a não ser na hora diária das lágrimas, feito agora. 

Tuesday, April 11, 2023

João do Rio, 102 anos depois

(reprise)

Gomes Freire, Lavradio, Inválidos e arredores, duas da tarde de quarta-feira. Há exatos cem anos, esta região e a capital da República pararam, porque morrera João do Rio enquanto as ruas fervilhavam pela perda. Hoje, o Centro mal tem trânsito, as lojas morreram pela decadência econômica que já vinha antes da covid19 e piorou. Outro brilhante escritor, Jack Kerouac, veria aqui o mesmo cheiro de rua triste que encontrou ao escrever "Cenas de Nova York". 

Pelas ruas do Centro, o progresso e a miséria se esbarravam naquele tempo. Os cafés abarrotados, o ir e vir das gentes, enquanto ao largo dos caminhos os excluídos pediam socorro. A história se repete em 2023, mas não se sabe ainda do progresso que abraçará o Rio devastado. Tempos atrás, votaram o projeto que faria o Centro renascer, mas por enquanto é só um disfarce para que as construtoras possam operar de novo em Copacabana, Ipanema e Tijuca. 

João do Rio viveu apenas 39 anos, mas que valeram por 80. De forma avassaladora, ele não apenas inventou o jornalismo formal carioca, mas foi o grande cronista fotográfico da cidade, do céu ao inferno, escrevendo de forma avassaladora e perene - seus textos continuam atualíssimos . E foi ele quem abriu o mundo para Ipanema numa crônica (que pode ter sido encomendada) sobre as maravilhas lunares do então areal. Como se sabe, deu certo. 

Estima-se que a morte de João do Rio tenha levado mais de 100 mil pessoas às ruas para seu cortejo fúnebre. Até hoje está no rol das grandes comoções cariocas, só não batendo a do Barão do Rio Branco, ocorrida antes. O próprio Barão vetou as pretensões de João do Rio em integrar a diplomacia, pois o candidato incorporava três vertentes que o preconceito não perdoa: obeso, negro e homossexual. Todas continuam em voga, horrorizado e humilhando a alma brasileira, mas os planos do Barão em ter um corpo diplomático 100% heterossexual já foram abaixo há tempos...

Ao mesmo tempo, não há como não pensar: há cem anos, um homem gordo, negro e gay parou a capital do Brasil pela força de sua importância, de seu talento, independentemente de suas relações com o poder constituído. João do Rio ganhou o país com seu texto e, depois deles, muitos foram os craques que se consagraram por seus escritos em jornais. Ok, nenhum deles teve um velório com cem mil pessoas, mas não se pode ganhar todas. 

Mais de cem anos depois, o Rio agoniza e estende as mãos nas calçadas, dorme debaixo das marquises e revira latas vazias de lixo desesperadamente. Não há vagas. Os ricos estão mais ricos, enquanto os pobres estão cada vez mais humilhados. A busca pelas manchetes nas bancas foi trocada por vídeos de dancinhas no celular. Ainda estão rolando os dados, mas é difícil crer que todos caiam com a face seis para cima. Resta sonhar com uma reconstrução que não faz parte dos planos empresariais, o que está evidente nestes últimos tempos. 

Em algum lugar do imaginário, João do Rio desce a Gomes Freire saudando os transeuntes. Depois vira na Senado e, a seguir, na Lavradio, onde para para almoçar no Mangue Seco lotado, cheio de cavalheiros e damas elegantes, que ele aprecia de esguelha. Quando terminar a refeição, ele caminhará pela Praça Tiradentes em busca do esplendor perdido da região, aproveitando para pescar alguns livros nos sebos da região e especialmente  em um, que funciona no Edifício Riqueza e é cheio de livros sobre a cidade. No sexto andar há uma loja pequenina, humílima e abarrotada, onde ele pode tomar um café, conversar com os livreiros, apreciar a chegada de um famoso cineasta, escutar a fala rouca de um jornalista e, finalmente, ficar a par das novidades musicais pós-Pixinguinha, tudo enquanto espia a bela vista da praça à janela. 

O que nos resta é sonhar. 

O leão e o tigre no Centro do Rio

(Flashback)

Depois de comermos pastéis com laranjada na Chic's da rua dos Andradas - estamos sempre comendo -, resolvemos caminhar até o Largo da Carioca, eu, Vitor S Barros e Jocemar Barros . Não levou mais do que dez minutos. Nos despedimos, eles foram a caminho da Praça XV e eu pensei em fazer minha velha visita ao Santos Dumont para tomar um sundae de morango em meio ao silêncio da praça de alimentação do aeroporto - quem chega ao Rio quer se mandar para casa ou hotel. Então peguei meu VLT favorito e fui. 

Uns vinte metros depois da entrada e você fica inebriado com o som de jazz e bossa nova do conjunto que se apresenta no SDU às sextas, das seis da tarde às oito da noite. Logo você está perto do palco e já conheço quase todos os músicos de vista, com exceção de um que conheço desde sempre: Sérgio Barrozo, contrabaixista com quase 60 anos de carreira, já tocou com os gigantes da música brasileira. Sérgio é nosso Ron Carter, nosso Charles Mingus e deveria ter uma estátua sua em praça pública. Seis ou sete pessoas aplaudem o conjunto. Outras acabam celebrando a apresentação de passagem. 

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Subo uma pequena escada rolante e desisto do sundae. A loja de mate promete sanduíches  da pesada num cartaz promocional. Ao mesmo tempo, dali dá para ouvir o belo som do conjunto lá fora. E por falar em música, carrego quatro CDs comigo: um, raro, de Paulo Lepetit ao lado do saudoso Gigante Brazil, um de Herbie Hancock - The Joni Letters, um tributo a Joni Mitchell, afora outros dois que ainda vou me lembrar. No mais, sigo com meus confortáveis chinelos, meu bermudão azul e reparando no clima tenso que alguns passageiros exibem em seus semblantes de desembarque, loucos para se mandar porque querem ou aproveitar o que o Rio tem de bom, ou escapar da ruindade. 

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Dois sujeitos estão com seus notebooks em ação nas mesas da lanchonete. Aguardo pacientemente pelo atendimento. Quando a moça vem, penso que já são quase sete da noite e ela já deve estar morta de cansada pelo trabalho extenuante. 

Peço o lanche, vou para a mesa de fundo e, quase ao mesmo tempo, os dois clientes se mandam. Meus sais: acabei de lanchar com Jocemar, sou um esfomeado irresponsável. Não, não, longe disso: engordei por excessos mas me cabe o perdão de já ter passado fome algumas vezes na vida, inclusive quando supostos amigos faziam vista grossa para o acontecimento. Vida que segue. Já falei algumas vezes que, no passado e com saúde, fui atleta em treinamento para a São Silvestre - sonhava romper o ano correndo na madrugada urbana de São Paulo. 

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Hã anos que ouço falar desse disco de Paulo Lepetit com Gigante Brazil. Finalmente está em minhas mãos. Sou fã de Paulo como músico e facebooker. A Isca de Polícia é um negócio sério demais. Saudade de vê-los em ação. A última vez foi no CCBB. Já Gigante é saudade. 

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O sanduíche é bom, tecnicamente bom, o pão é gostoso mas o recheio deixa a desejar. Sou cliente do Paladino e do Parada de Copa, acostumado a recheios generosos, de matar a fome. 

O mate estava uma porcaria. 

Pelo menos carreguei um pouco o celular. 

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Ao descer, passo novamente pelo palco dos shows de sexta, agora com música ambiente porque é intervalo. 

Numa mesa na lanchonete ou restaurante à esquerda do palco, Sérgio Barrozo traça um sanduíche e parece feliz da vida. Não nos esqueçamos: ele é nosso Mingus, nosso Ron Carter, e merece todas as reverências. 

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A sexta-feira à noite do Aeroporto Santos Dumont é fria e vazia. Sexta-feira, 13 de maio, dia de superstições. E reflexões. 

Uma breve espiada e logo se percebe o quanto precisamos evoluir em termos de inclusão negra por ali. 

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Deveria ter pego um Uber, mas simplesmente esqueci, então logo chego ao VLT e fico apreciando a beleza noturna da região, as árvores, os prédios da Beira-Mar. Troco mensagens com Marina, o Fabiano Soares - que é um tremendo escritor - diz que virá ao sebo na terça.

As curvas do percurso me lembram o Tivoli Park por algum motivo. O trecho do Aeroporto à Cinelândia é imperdível pela bela arquitetura ali reunida. 

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Bem ao lado do acesso do metrô na Santa Luzia tem uma turma comendo churrasquinhos e bebendo cerveja. Jovens mulheres bonitas e seus pares. Por um instante, parece até que a pandemia não nos abateu. 

O Rio é a cidade de cidades misturadas, versou o poeta Fausto Fawcett. Nada parece ser tão preciso para descrever a Cinelândia atual. Do Starbucks na esquina até o Amarelinho, o MC Donald's se salva aberto e cheio. Nas marquises e bancos, muita gente em situação de rua e, na amostra local, a população negra é de 100%. As reflexões sobre 13 de maio são inevitáveis e dolorosas. Somos uma sociedade muito atrasada e desigual. 

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No tempo que me resta, olho para cima e o relógio do Edifício Mesbla me oferece um tom de Gotham City, não apenas a cidade dark de Batman mas também a letra profunda de Macalé e Capinam. 

Perto de mim, pessoas descem delicada mas  apressadamente pelas escadas do metrô. Taxistas caçam passageiros. Os últimos clientes das Lojas Americanas deliciam-se com suas sacolas cheias de promoções. Garotos e jovens perdidos carregam suas caixas de Mentos para vender aos transeuntes, muitos deles sem um níquel sequer. Há um burburinho na entrada do Teatro Riachuelo e, bem em frente, na fila do ônibus 247. A miséria, a indiferença e o consumo dividem o mesmo espaço à rua, como se tudo parecesse normal. 

O leão e o tigre andando lado a lado na mesma calçada, assim disse Jack Kerouac em "Crônicas de Nova York" em alusão a Tom Wolfe.

Tuesday, April 04, 2023

Manhã praieira (reprise)

SEPAREI O DINHEIRO para um picolé e um copo de mate, botei meu par de chinelos e desci. Todo mundo ainda estava dormindo em casa, algo perto das seis e meia da manhã. 

A Figueiredo Magalhães praticamente não tinha carros nem gente, ao contrário de 99% do tempo. É que o domingo de manhã tem certo gosto de ressaca, de noite para dormir.

Quase na esquina com Barata Ribeiro, jovens vindos da Lapa, o underground carioca, saltam do ônibus no ponto e há quem cogite um lanche no Sumol, um suco e sanduíche, talvez uma fatia de pizza napolitana que eles vendem toda hora.  

Caminhe menos de cem metros e, na porta da galeria, dá para saber as próximas atrações do Cine Condor Copacabana. Bem na porta fica meu ponto de ônibus preferido para ir ao Maracanã. Na pequena galeria tem uma loja que vende camisas bem confortáveis

[Avenida Copacabana versus Figueiredo Magalhães, a esquina mais barulhenta do mundo. Marcelo Conde e Hermínio moravam ali. Garotos extenuados pela noite virada deixam o Gordon, lendária lanchonete famosa pelas partidas de mau-mau e truco disputadas no segundo andar da loja. Os sanduíches eram imperdíveis.

O símbolo da drogaria na Figueiredo é um dos colossos de Copacabana: Pepe Corta Zeros, um tucano - ou arara? - combatente da inflação de 70% ao mês, porque a vida é assim na Era Sarney. É um tucano bem grande na logomarca, antes de chegar a agência do Banco Econômico.

Na transversal, tem a loja da Gênova com os melhores salgados e a melhor pizza brotinho do mundo, senhor! Gostosa demais. A Domingos Ferreira é uma rua discreta, de pouco movimento. Uma quadra antes do temível Edifício Master - eu e Xuru passamos sempre do outro lado da rua. 

Na quadra do Camões é fácil ver Júnior, um dos melhores jogadores brasileiros. Volta e meia está por ali com seus ex-vizinhos, apaixonado que é pelo Juventus, o time mais popular de futebol de areia do Rio.

Atravesso a Atlântica, desço a escadinha de dois degraus e meu par de chinelos Katina Surf protege meus pés do calor da areia. A praia ainda está deserta. Manhãzinha de domingo, todo mundo tem um pouco de ressaca, seja etílica, seja sentimental. 

Um garotinho sentado mais adiante mexe com a pá num balde, brincando com a areia. Sua mãe o observa atenta e orgulhosa. É uma linda e pequena família. Noves fora, estou sozinho bem aos pés do Atlântico Sul, então me sento, olho para um lado e outro, escuto o breve som do mar e nem quero pensar no vestibular, nos problemas e nas soluções que ainda não tenho. Por enquanto é tentar sair do quartel, passar na prova, estudar e arrumar um emprego. Os raios solares parecem mais fortes, já deve estar perto das oito da manhã. Daqui a pouco eu compro um picolé de limão ou côco.

O mate fica para depois. A praia ainda está deserta, mas ao longe já tem um senhor vendendo o Dragão Chinês e outro com a chamada inesquecível: "É Maria Teresa Weiss!".