Thursday, February 24, 2022

a tempestade

São quase seis da manhã e a cidade acorda lentamente, com bem menos gente do que de costume - estão quase todos desempregados, muitos não saem do que sobrou de suas casas, há um clima permanente de que está faltando alguma coisa.

Perto de dois anos de pandemia, morrem quase mil pessoas por dia mas a maioria não está nem aí. Naturalizaram o processo de carnificina, o que não é de hoje. Se não ligávamos para os esfomeados, os sem teto e os junkies, por que nos comoveríamos com COVID-19? No fim, o que ficou valendo foi o discurso da besta-fera: "todo mundo vai morrer". Na terra da indiferença, o outro que se dane. É o jeitinho. 

A guerra prevalece do outro lado da Terra, mas quem disse que não a temos bem diante de nossos belos narizes? Ela está por toda parte, e não adianta fingir que não se trata da ganância capitalista. Lembra uma doce canção pop dos anos 1980: "proliferando ódio e destruição". 

Somos cruéis, muito cruéis. Capazes de matarmos uns aos outros por causa do futebol. Na primeira estupidez dita numa live qualquer, despejamos rancores na cara de todos. Em nome da justiça e da moral, humilhamos, ofendemos, agredimos verbalmente e aproveitamos para vomitar nossos recalques nem sempre enrustidos. Nós somos os cavaleiros da verdade haja o que houver, mesmo que esteja em campo a hipocrisia - condenar nos outros a escrotidão que desfraldamos com nossas bandeirinhas de mão. 

Muitos de nós ainda acreditam em verdadeiros estelionatos. Qualquer arminha basta para que a negligência desfile em seu carnaval particular. Quem nunca teve um dito amigo a dizer "A culpa não é minha, eu não vou mudar o mundo, ele já era assim quando nasci"? Não é de hoje. "Biado tem que morrer!", "Tem que tacar uma bomba na cavela e matar tudo". A solução simplista está nos discursos por toda parte: o outro que se phoda e pronto. 

Coitado de Deus. Em nome dele, homens podres e hipócritas promovem os discursos mais bárbaros e cínicos, debochados. Gente enganando gente com discursos baratos que não se sustentam. 

E ficamos a esperar o novo problema na linha do trem, o reconhecimento das vítimas apenas no IML na hora da desgraça, a corrupção gigantesca com a desculpa do combate à corrupção. A nova tempestade com suas vítimas fatais. A nova guerra mundial que vai gerar lucro para poucos e tragédia para muitos.

"A próxima versão vai solucionar todos os problemas anteriores". É muita vontade de acreditar. 

Quinta-feira, um lindo dia de sol mas pode chover a qualquer momento. Tanta gente desmaiada debaixo das marquises porque simplesmente não consegue dormir por medo de assassinato e/ou estupro, mas é muito mais fácil chamar todo mundo de vagabundo, especialmente se você tem papai e mamãe bancando suas contas.

Nunca se leu tanto no Brasil. Nunca foram produzidos tantos livros. Nunca se publicou tanta berdha. 

Calhordas ditos liberais comemoram o empreendedorismo das grandes caixas de isopor nas costas, da bicicleta alugada e das 14 horas diárias em subempregos, até que o nobre trabalhador atravesse 50 quilômetros da cidade e descanse na paz de seu barraco - na verdade desmaie e desperte com o relógio tremulando. 

O que importa é lacrar. Aparecer. Por likes, tem quem alugue a mãe morta, não importa. Somos os cavaleiros da verdade irrefutável. Mentimos na Justiça, na Polícia e na Receita Federal. Vamos vencer!

Uma em cada sete pessoas da Terra não tem sequer água, mas muitos de nós afirmam que o mundo é desenvolvido. Afinal, que diferença faz se dois bilhões de pessoas mal respiram? 

A culpa é sempre do outro. O pênalti roubado a nosso favor a gente esquece. O troco a mais também. 

"Bom dia. Afaste-se de toda negatividade e seja firme em seus objetivos".

Enquanto isso, os sonhos são destruídos.

Felizmente a arte resiste.

@pauloandel

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