Friday, May 07, 2021

sexta-feira sete

ACORDEI muito antes do razoável em mais um dia nessa terra de angústias. Dormi um pouco antes do normal, desabado, depois de ver meu time desperdiçar a chance de uma vitória - foi uma das únicas coisas legais do dia, além do aniversário da Marina. De resto, mais um dia difícil. Não que eles não existissem, mas é que tem sido cada vez mais difícil ser brasileiro. Dor por toda parte. Dor. Indiferença. Intolerância. Incompreensão. Escrotidão, até mesmo de quem se diz consciente das questões sociais. Errar é humano, mas o brasileiro médio tem exagerado. 

LÁ FORA tem o silêncio. Enjoy the silence. Eu adorava o silêncio em noites no campo, quando era escoteiro. Todos estavam dormindo e eu de prontidão. Gostava. Tinha quinze, dezesseis anos, acreditava no mundo e nas pessoas. A ingenuidade é um tesouro.

Agora tenho medo do silêncio. Ele sugere abandono, ausência, alvorada decadente. Ligo a TV para não me sentir tão sozinho. Bem ao longe passa um ônibus lentamente, freando. As ruas já são vazias de dia, imagine à madrugada. Quando fui um garoto de Copacabana passando hora na rua, perto da portaria, até meu pai adormecer do inferno e poder ir para casa, eu via um certo silêncio na madrugada, só que naquele tempo o bairro era cheio de gente transitando à uma ou duas da manhã, cheio de carros e luzes no asfalto, como se fosse Nova York tropical. Havia silêncio na praia noturna também, mas os gritos do futebol cortavam a mudez, além dos risos dos casais que transavam à beira-mar.

Sinto saudades das sextas-feiras. Às vezes marcávamos um chope num bar preferido. Sempre preferi os mais vazios, onde se possa conversar. Escutar o interlocutor é puro respeito. Antigamente eu tinha colegas para isso, mas acabou muito antes da pandemia, é que as pessoas precisam pensar em si mesmas e isso não costuma contemplar o outro. Seria bom tomar uma cerveja depois do expediente, ter algum alívio, fingir por alguns instantes que a vida é boa, mas passou. Os poucos bares sobreviventes estão vazios. Perdemos o que havia de melhor. 

Seis da manhã. Estou suado. Vou tomar um banho. Na TV passam os gols da rodada com uma pressa imensa, mal dá para ver direito. O gol precisa ser respeitado. Quase ninguém liga. 

Estou cansado. A padaria ainda não abriu. Vou comprar três pães e comer antes de ir para o trabalho, sonhando com clientes que não sejam muquiranas. Sonhando com a vida digna que perdi, com um país que minimamente existia. Tudo isso é real, mas não passo de uma personagem. Pessoas vão curtir com lágrimas, desejar força e manter distância. Outras, muito poucas, vão tentar ajudar. Só os mais sensíveis vão entender que a prosa não é uma autobiografia. A dor existe mas somente os mais sensíveis irão entender. 

É sexta-feira de manhã. Os bares morrem numa quarta-feira. Ontem foi dia de chacina. Até quando seremos uma república federativa cheia de gente estúpida, desprezando o próximo e se entorpecendo com um falso amém cheio de ódio, uma falsa dancinha no reels, um inútil textão lacrador até que venha uma nova chacina, um novo crime hediondo, uma nova chacina, uma nova chacina, o sonho da redenção do próximo jogo, a próxima sexta-feira nublada com cheiro de ruas tristes? 

Estou cansado. São seis e treze da manhã. Nenhum ônibus passa. Um rapaz chora na televisão, contando de muitos tiros na porta de um bar. Tudo é inútil: corpos empilhados, vinte e quatro suspeitos mortos, um policial morto, barões do tráfico e da milícia sorriem, não faz diferença. Corpos empilhados garantem o sucesso dos negócios. 

Cidade maravilhosa, cheia de encantos mil. 

É quase tudo verdade. 

@pauloandel

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