Tuesday, September 12, 2017

A ditadura contra Elika Takimoto


Introdução de Ernesto Xavier

Hoje, após denúncia de "haters", a escritora Elika Takimoto foi bloqueada do Facebook, por 24h, após uma postagem em que falava sobre o fechamento da exposição promovida pelo banco Santander, boicotado e denunciado, igualmente, por membros do MBL. Colocarei o mesmo texto aqui e vou esperar ser banido. Aguardemos as consequências, Sr. Mark Zuckerberg.

Eis o texto:

​Com tudo o que aconteceu sobre o episódio-exposição-Santander, além de ter ouvido pérolas que o “banco Santander virou marxista”, “não gostei portanto isso não é arte”, “esquerdistas apoiam pedofilia” e coisas afins, o que me chocou mais foi ver o incômodo causado por um “quadro” de um homem fazendo sexo com um animal e a conclusão de que aquilo era apologia à zoofilia.

Não sou de julgar ninguém, mas achei de uma falta de coerência extrema e, porque não confessar?, uma burrice sem tamanho. (Se registrar artisticamente um crime é apologia ao mesmo o que essa gente vai fazer com os livros de literatura?)

Não tardou para ser chamada de insensível com os bichos. Logo eu, vegetariana tentando virar vegana.

No mais, só provocando, se o bicho tivesse sido desenhado morto em cima de um recipiente com uma maçã na boca cercado de batatas coradas não haveria a mesma comoção pelo animal em questão que possivelmente sofreu horrores durante a vida e na hora da morte como tantos são os bichos que são torturados e vão para o vosso prato.

Voltando ao foco de minha postagem:

Verbalizei o que senti em um tweet: “Fala que quadro mostrando a zoofilia é crime, mas nunca se manifestou contra obras retratando a escravidão. Estamos de olho.”

Ora, se retratar bicho sofrendo abuso é apologia ao crime por que as obras com os negros sendo torturados não causaram a mesma comoção? Que lógica é essa que só se aplica ao animal?

Qual foi a minha surpresa hoje ao ver o quadro completo! O que havia nele? Negros sendo tratados da mesma forma que o bicho! O que foi recortado para falaram que a exposição não prestava? E se a exposição fosse só de negros, e de mulheres negras e brancas sendo abusadas? Será que seria também proibida? Ou viraria produto pornográfico como tantos outros?

Em tempo, apologia ao crime é isso que vocês todos andam fazendo: a famosa indignação seletiva. E fiquem com essa verdade: proibir exposição porque se sentiu ofendido flerta com o fascismo. Não vai assistir, fale mal, mas censurar exposição artística jamais.


Abram os olhos e pensem antes que a fogueira de livros seja acesa porque montada ela já está.






NÃO HÁ ARTE POSSÍVEL PARA A GENTE DE BEM

Daniela Name

O Globo, 12/09/2017


RIO — Uma exposição que inflamou aquela cidade fria. Os cidadãos de bem comentavam, mesmo sem ter visto. As mães protegiam seus filhos daquelas telas, esculturas, fotografias e objetos, consideradas uma ameaça à família, ao espírito nacional, aos altos valores. Cada obra como um ataque premeditado à ordem; cada defensor desse tipo de arte como um pervertido, pedófilo, bandido ou prevaricador — talvez todos os atributos combinados. Uma patrulha civil, milícia da moral, de plantão do lado de fora, abordando e intimidando as pessoas. Afinal de contas, quem não é pelo bem compactua com o mal. Porto Alegre? MBL? Mostra queer? Não. Este texto começou em Munique, onde, há exatos 80 anos, em 1937, um certo Adolf Hitler transformou a mostra "Arte degenerada" em uma de suas principais peças de propaganda ideológica.

Nas paredes e no espaço, obras de Piet Mondrian, Emil Nolde e Oskar Schlemmer, entre outros grandes nomes da arte moderna. Esteticamente, eles representavam a ruptura com a ideia de verossimilhança e com o sistema de representação ordenado e hierárquico vigente desde o Renascimento.Simbolicamente, apontavam para a arte como um horizonte de ambiguidades, de opacidade e de ficção; um campo sem compromisso com o real; um impulso sempre faminto de liberdade e de utopia. E, é claro, um perigo avassalador para a intolerância e o discurso monocórdio de Hitler. A exposição "Arte degenerada" deu ao ditador a chancela para a destruição de obras dos artistas participantes e também de Picasso, Kandinsky e Matisse — todos vistos como vetores "judaico-bolcheviques". O resto da história conhecemos bem — ou ao menos deveríamos: obras de arte queimadas, escondidas, destruídas. Artistas e pensadores fugindo ou morrendo.

Na Porto Alegre do último feriado, uma instituição financeira internacional, o banco Santander, fechou um projeto que se dispôs a patrocinar. Uma exposição apresentada à opinião pública como um libelo a favor da diversidade, inaugurada há menos de um mês. No Rio, não vi a montagem da mostra, embora conheça bem boa parte das obras selecionadas pelo curador Gaudêncio Fidélis.

Ao percorrer os trabalhos reunidos em "Queermuseu — Cartografias da diferença", percebo que o subtítulo sintetiza muito melhor esse projeto do que seu título. Trata-se de um conjunto que procura debater, antes de mais nada, a importância da alteridade, e não apenas através de um filtro das bandeiras LGBT. Há um retrato de Portinari e obras relacionais de Lygia Clark mescladas a trabalhos de forte conteúdo erótico, como as fotos de Alair Gomes. E de outros trabalhos que apresentam cenas de sexo, mas para que elas discutam alto muito além dele, caso do trabalho "Cena interior II", de Adriana Varejão, uma reflexão profunda sobre os estupros e os bastardos produzidos em nosso período colonial. É uma mostra sobre duelos diversos para a conquista da diversidade, propostos por um grupo de obras que não veio ao mundo para nos oferecer paz. A arte e o museu contemporâneos serão sempre mais potentes quanto forem menos apaziguadores — e a reação à mostra gaúcha é apenas uma comprovação disso.

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