ESQUINA de Sete de Setembro com Uruguaiana, coração do Rio, a Cavé que um dia foi de Jane, talvez duas e meia da tarde e finalmente revejo Anne depois de quatro anos. Impressionante como ela ainda me causa tanto impacto positivo depois de vinte e nove anos, mais impressionante é que parece vocacionada a ser linda e jovem para sempre. Nem um pouco impressionante que esteja casada e feliz – impossível seria sua disponibilidade. Luiz, velho amigo também presente, caminhamos para o café da Livraria da Travessa para gastarmos horas em admirável conversa fiada, mas não houve café e sim Stellas geladas. Antes disso tudo, tive um bom feriado, inúmeros beijos de chocolate, fiz estatísticas mais cedo, falei pouco com meu amor e caminhei desde a rua do Senado até o ponto de reunião, num outono gelado que inunda o Rio de folhas ao chão.
Então falamos da vida. Da sociedade. A frieza do mundo moderno. O ir e vir de gente formada que mal sabe ler. A decadência intelectual dos meios jornalísticos. E rimos, rimos bastante. Anne tinha me dado conselhos amorosos em 2009 que segui à risca, para risinhos dos funcionários do prédio onde moro – e se assustou em saber de minha paixão louca que não cessa. Luiz falou da quebra das convenções, ao mesmo tempo em como mantém um casamento feliz, duradouro e fiel mesmo sendo um sex-symbol da academia de ciências. Eu às vezes também sou um sex-symbol: Tatiana me chamava assim e adorava que eu fosse o gordinho oficial quando viajávamos. Perdi uma grande oportunidade mas não me arrependo. Três amigos à mesa, uma doutora linda, um doutor querido, lembramos que não temos nenhum deus nas mãos – quem nos condenaria? - para Ursula, sou filho do capeta e isso me soa ridículo demais – há uma única mulher que me faz pensar em deuses – há uma bailarina no caminho. Rimos mais. Rir é bom, afaga a alma, serve de acalanto para não se lembrar desta terra linda e louca, onde milhões morrem à míngua e vivemos para servir a um sistema basicamente inútil. Depois voltamos a falar de coisas sérias demais, nenhuma delas tão divertida quanto as viagens e os pêssegos da adolescência. Onde repousa a casa de Henrique em Arraial do Cabo agora? Derrubada pela força da grana que ergue e destroi coisas belas – no muro dela, anos depois dos anos de viagens incríveis, eu beijei Tatiana.
A livraria é abarrotada de títulos por todos os lados, inclusive dos alternativos que não chegam às casas convencionais. Pensei na importância de se escrever um livro: será que ainda tem validade jogar uma mensagem numa garrafa ao mar para que alguém a resgate? Pode ser. Eu e Luiz somos sócios em dois livros de futebol que vêm a caminho. Sim, teremos mais. E também dois romances. Escrever é jogar amor no papel, mesmo que ele também seja ódio e dor. Qual o sentido da vida? Nenhum. E a vida precisa ter sentido? Não necessariamente. Viva e deixe viver, o caminho surge por si mesmo e nunca sabemos onde será o fim da estrada, exceto quando Anne comunica que precisa ir embora, o horário estourou e digo a ela que duas horas de sua prosa valem um século, prometo não telefonar mais de quatro em quatro anos, sou muito relapso com essas coisas mas não deveria. Compro o novo disco do Daft Punk e pago mais caro do que o (muito) merecido. Hora de deixar a deusa morena de simpatia na estação Carioca, beijos, abraços, uma felicidade enorme dos amigos que se querem tão bem. Linda, ela desce as escadarias como se fosse uma modelo de algum outro país latino. Antes, Sete de Setembro, Rio Branco, o rush nas ruas – você fica caminhando pela Uruguaiana mas não tira o pensamento da Rio Branco – sim, é verdade, tentei mais de trinta vezes – quem é homem de verdade para confessar a uma mulher que beijou outras outras trinta pensando nela o tempo inteiro? Oh, Rubem Braga contaria uma história melhor.
Cogito o World Press Photo na Caixa Cultural, logo ali do lado; Luiz sabiamente decide por um café – sim, agora sim! - na livraria Cultura. Sempre abarrotada, Yamandu passa ao largo sem ser incomodado, conseguimos uma pequena mesa e dois banquinhos estilo bossa-nova. Sempre temos mais assuntos, que vão aos porões do peso aos céus do bom humor. E temos alguma tensão por conta de nossas vidas e do futuro que se avizinha – eu, talvez menos: não tenho nada a perder, estou completamente sozinho no mundo e a cada dia que passa isso se encaminha para uma realidade imutável – nem achei que fosse um dia passar dos quarenta anos de vida - it's better to burn out than to fade away – o que importa na próxima semana? A vida é agora! - Temos saudades dos nossos campeonatos de botão que nunca mais vão acontecer porque nossa Copacabana e o Xuru morreram – sempre estive sozinho desde que aprendi com um ou dois anos de idade a dizer “não precisa” sempre que alguém tentava me ajudar a andar – ou quando comecei a escrever sozinho, por puro instinto – falo de coisas de quarenta anos atrás como se fossem ontem. Queria mesmo era ter milhões de reais só para evitar que Luiz precisasse se mudar para o Maranhão: ideal seria financiarmos uma nova Factory com algum Reed, Cale, Warhol, Basquiat também. Uau, que loucura!
CAMINHAMOS até a Presidente Vargas, Luiz tomou o ônibus confortável para a Freguesia. Retornei a pé pela Uruguaiana, uma sexta-feira fria sem pagodes, sem funk na rua, sem garotas de coxas e vestidos generosos, o silêncio e o negrume de mãos dadas dizendo “vá embora, a semana acabou, o mês também”. Penso em jantar ou lanchar, desisto. A Praça Tiradentes, deserta. O edifício Ventura todo iluminado. O ponto de ônibus para Campo Grande e assemelhados lotado de trabalhadores, garotas bonitas, gente sofrida e fé. Nenhum deus me oferece a mão, sigo sozinho. Lavradio, um deserto enquanto a turma não chega para os shows sofisticados e caros de “gente bonita”. Henrique Valadares, minha casa no caminho. Escutar um disco novo, pensar num poema, mastigar o sofrimento de amor enquanto as paredes permanecem mudas e quase caladas pelo non-sense.
Uma quadra depois, o desconhecido e desimportante escritor Paulo-Roberto Andel carrega um pacote com biscoitos, pão, queijo, refrigerante, pasta de amendoim, jornal velho e outras quinquilharias enormes sem qualquer valor. Abre a porta do pequeno apartamento, joga tudo no sofá, abre um iogurte, verifica as mensagens no telefone celular, recusa um convite para uma suruba, recusa uma ida a um bar qualquer, percebe-se falido e mais velho do que já era, pensa em Marina, pensa em Juliana, cogita chorar ao lembrar-se de que Fred e Xuru estão muito mortos mesmo vivos demais à memória. Joga as roupas no tanque, mergulha num banho gelado, seca-se, coloca uma bermuda nova, liga o toca-discos, ouve os Paralamas do Sucesso em belas versões acústicas, apaga a luz e pensa. Troca o disco por “Shine” de Joni Mitchell, dedicado a um balé. Folheia o amor em dias de fúria de Ferlinghetti. A noite de sexta-feira mal começou e ele a encerra em um grand finale impublicável sem a menor chance de dormir - virou um vampiro Peter Pan.
E assim termina o último dia de maio.
@pauloandel
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