Wednesday, March 30, 2011

COLAGENS

I


mergulhado no fundo



de

um




poço


cardiológico



II


e então rimos sem qualquer sentido/ das tragédias à tela de elétrons/ ou ficamos inertes/ diante do enfartado na avenida central/ e achamos lindeza no céu/ enquanto a terra é cinza e crua e vocifera cadáveres/ a terra é linda e seus mortos e famintos sofrem, sofrem/ nunca terão a dignidade devida/ nem mesmo a garota gordinha que frita bifes numa loja de lanches/ ou o garoto que entrega panfletos rejeitados/ rimos pela nossa própria estupidez/ enquanto o agiota explora/ o golpista falsifica e senhor nenhum perdoa nossas dívidas/ a natureza é bela e nossa ganância sabe destrui-la como ninguém/ o estranho mundo onde vivemos quase sem sentido e toda vã recordação morre sem destino algum/ por estas palavras os egoístam me chamarão de tolo e cego e comunista/ sempre sabem o que melhor dizer, eu reconheço.



III


dói em mim

o doce lancinante

da tua voz

juvenil

sempre tão longe

e longe

que me parece lenda:

beleza efêmera

para ansiar

meu coração



IV


a única coisa

relevante,

frente ao caos urbano

é a desconstrução -

começar de novo,

viver a modéstia

e assumir a culpa

da nossa fragorosa

solidão. Paulo-Roberto Andel, 30/03/2011

Tuesday, March 29, 2011

DA AGÊNCIA CARTA MAIOR - EMIR SADER



(Reprodução de artigo) 1964: data incômoda para a direita A cada ano, quando nos aproximamos da data do golpe de 1964, uma sensação incômoda se apossa da direita – dos partidos, políticos e dos seus meios de comunicação. O que fazer? Que atitude tomar? Fingir que não acontece nada, abordar de maneira “objetiva”, como se eles não tivessem estado comprometidos com a brutal ruptura da democracia no momento mais negativo da história brasileira ou abordar como se tivessem sido vítimas do regime que ajudaram a criar? Difícil e incômoda a situação, porque a imprensa participou ativamente, como militância politica, da preparação do golpe, ajudando a criar um falso clima tanto de que o Brasil estivesse sob risco iminente de uma ruptura da democracia por parte da esquerda, como do falso isolamento do governo Jango. Pregaram o golpe, mobilizaram para as Marchas da Família, com Deus, pela Liberdade, convocadas pela Igreja, tentaram passar a ideia de que se tratava de um movimento democrático contra riscos de ditadura e promoveram a maior ruptura da democracia que o Brasil conheceu e a chegada ao poder da pior ditadura que conhecemos. Na guerra fria, a imprensa brasileira esteve plenamente alinhada com a politica norteamericana da luta contra a “subversão” contra o “comunismo”, isto é, com o radicalismo de direita, com as posições obscurantistas e contrárias à democracia, estabelecida com grande esforço no Brasil. Estiveram em todas as tentativas de golpe contra Getúlio e contra JK. Em suma, a posição golpista da imprensa brasileira em 1964 não foi um erro ocasional, um acidente de percurso, mas a decorrência natural do alinhamento na guerra fria com as forças pró-EUA e que se opuseram com todo empenho ao processo de democratização que o Brasil viveu na década de 1950. Deve prevalecer um misto de atitude envergonhada de não dar muito destaque ao tema, com matérias que pretendam renovar a ideia equivocada de que a imprensa foi vitima da ditadura – quando foi algoz, aliado, fator no desencadeamento do golpe e da ditadura. (O livro de Beatriz Kushnir, Cães de guarda, da Boitempo, continua a ser leitura indispensável para uma visão real do papel da mídia no golpe e na ditadura.) Promoveu o golpe, saudou a instalação da ditadura e a ruptura da democracia, tratou de acobertar isso como se tivesse sido um movimento democrático, encobriu a repressão fazendo circular as versões falsas da ditadura, elogiou os ditadores, escondeu a resistência democrática, classificou as ações desta resistência como terroristas – em suma, foi instrumento do regime de terror contra a democracia. Por isso a data é incômoda para a direita, mas especialmente para a imprensa, que quer passar por arauto da democracia, por ombudsman das liberdades politicas. Quem são os Mesquitas, os Frias, os Marinhos, os Civitas, para falar em nome da democracia? Por isso escondem, envergonhados, seu passado, buscam a falta de memória do povo, para que não saibam seu papel a favor da ditadura e contra a democracia, no momento mais importante da história brasileira. Por isso tem que ressoar sempre nos ouvidos de todos a pergunta: Onde você estava no golpe de 1964?

Tuesday, March 22, 2011

AO QUARTETO NOVO


Ontem, perdido na mediocridade da televisão, esbarrei numa ilha de excelência: a SESC TV. Nela, mais um dos maravilhosos shows de música instrumental que só se pode ver por lá: uma apresentação de Theo de Barros, um dos mais completos músicos brasileiros da história. E, claro, onde tem o nome de Theo, não poderia faltar a menção ao Quarteto Novo.

Era originariamente não um quarteto, mas sim trio - o Trio Novo. Nasceu para acompanhar ninguém menos do que Geraldo Vandré, que fazia a terra tremer com sua música colossal e brasileiríssima em plena ditadura militar. Além de Theo, formavam o Trio os jovens Airto Moreira na percussão e Heraldo do Monte na viola. Tempos depois receberam um quarto integrante, jovem nordestino que já mostrava muita habilidade com piano e sanfona, mas que marcaria o grupo ao tocar flauta: ninguém menos do que Hermeto Pascoal, o maior músico que Miles Davis viu tocar. E, com essa formação musical que lembra no futebol o ataque da seleção brasileira tricampeã no México, o Quarteto Novo seguiu solo para um único disco, que levou seu nome e foi lançado em 1967, com oito extraordinárias faixas que poderiam soar como o melhor do jazz, mas que não eram "apenas" jazz - na verdade, a música instrumental brasileira levada ao Olimpo pela força da temática nordestina. É um disco que, ouvido 44 anos depois, ainda tira o fôlego dos apreciadores da boa música, tamanha a sofisticação e exuberância dos arranjos e sonoridades ali presentes. Um momento histórico e uno: jamais se repetiu. Antes da despedida, ainda fizeram parte da histórica vitória de "Ponteio", de Edu Lobo e Capinam, no Terceiro Festival de MPB.





Décadas depois, os integrantes do Quarteto Novo estão vivíssimos, hiperativos e com carreiras internacionais respeitadíssimas. Seu rol de fans, dentre os quais ardorosamente me incluo, bem mereciam uma apresentação ao vivo do disco de 1967, marco raro de um Brasil inquestionável e maravilhoso do ponto de vista artístico.


Paulo-Roberto Andel

Wednesday, March 16, 2011

SOBRE RICHARD ASHCROFT


A noite de sexta-feira não tem calor ou frio, apenas Richard Ashcroft está ao meu lado com sua voz marcante, berrando em plenos pulmões uma frase que me parece emblemática: "Are you ready?". Não creio. Não creio mais. Não acredito no ser humano preparado, em permanente estado de alerta, buscando uma perfeição impossível; somos tão falíveis que qualquer sopro pode cerrar a porta de nossas vidas. "I'm not ready so!", diria a um conhecido qualquer que aqui estivesse enquanto contemplo as cenas televisivas: a destruidora imponência do terremoto e seu tsunami promovendo o mau espetáculo de dor e morte na Ásia. Não estou pronto, talvez nunca esteja, mesmo que seja frente a um simples café no centro da capital trocando prosa com outro conhecido. Não estou pronto para os horrores do verão, os maus-lençóis de agosto, a rijeza de um maio qualquer. A mutação constante não é fortaleza frente às mazelas da vida; a cada momento, eis que uma fagulha possa se tornar vulcão e, assim, nos tragar como o nada que somos frente à grandeza do universo. A música não para de tocar; Richard Ashcroft já fez canções mais pesadas e instigantes, já fez a casa cair sem que alguém sucumbisse, tudo muito diferente da televisão muda e aterrorizante. Era música, talvez aquela que pontuasse meu rápido bate-papo com o Moraes nos subterrâneos da estação Carioca ou, noutro caminho, me inebriasse numa tarde de amor com uma mulher proibida. É a dor: o tsunami segue firme em sua obsessão pela morte. Não estou preparado; quando estiver, serei tão frio e indiferente que nada será mais importante do que o fim de uma canção, e não é o que quero. A força do Japão há de renascer dos escombros, tal como foi contra uma bomba atômica; Richard Ashcroft insiste numa negativa. Noutra vizinhaça, os casais e combos se preparam para a dança do sexo de sexta-feira. As cinzas do carnaval navegam delicadamente pelo ar noturno. Meu bloco-do-eu-sozinho é um coro de multidão; é um bloco, é um blog. Isso é música? Quem sabe?


Paulo-Roberto Andel, 11/03/2011

Wednesday, March 02, 2011

PONTE


um caminho
sem prece
nem armistício
é o que me parece
sina,
o que me conforta
à sombra,
um caminho
sem mistério:
tempero
candura
recato
e a certeza inevitável
de que a vida busca fim,
tão certo quanto é
o último suspiro
do poema.


Paulo-Roberto Andel, 02/03/2011