Pela manhãzinha, lembrei de certa passagem do maravilhoso livro de Ruy Castro, “Ela é carioca”, quando Cacá Diegues (este sim, cineasta de verdade) polemizou com os críticos de seu filme “Orfeu”, acusando-os de nunca terem visto “Aurora”, de Friedrich Murnau, clássico cinematográfico do ano de 1927. Muitos dos críticos, claro, ao se depararem com a trajetória oceânica de suas ignorâncias, simplesmente calaram: como enfrentariam Cacá? Para mim, este pequeno episódio é um marco exemplar de como funciona em muitos casos a ânsia debatedora do brasileiro mediano: baseado no “já ouviu falar” ou “eu li no Globo” ou ainda “o Jabor me disse”. De certa forma este comportamento é compreensível porque ainda temos muito a cumprir em educação e cultura (lembrando que a escolarização é um paralelo). Eu perdoo o jovem menino magriço, desnutrido, que padece nos bolsões de miséria que ainda perduram no país, mesmo com a verdadeira revolução neste sentido que se tentou de 2002 para cá. Toda forma, ainda falta muito. Eu perdoo os desassistidos que não tiveram a chance de ler bons livros, aprender a ciência social, que não acessaram as artes porque simplesmente viveram num caos econômico que os alijava destas oportunidades. O que acho imperdoável vem daqueles que tiveram acesso aos meios educacionais, escolares e sócio-culturais e, mesmo depois de ganharam dinheiro e até algum status em suas vidas profissionais, continuam tão ignorantes quanto nos tempos idos. É dessa classe que surgem incensados novos “grandes gênios” da vida cotidiana brasileira – a maioria sem genialidade alguma que não tenha sido obtida sem penhor. Falo dos Mainardis, Jabores e Olavosdecarvalhos, apenas para citar alguns exemplos de fracasso intelectual que é vendido feito “oro”. Sujeitos como estes ganham visibilidade não pela profundidade de suas produções – a de Mainardi, propriamente, é nula – mas porque a classe ignara intelectualmente e bem-disposta financeiramente os elege como “heróis”, para assim poderem abrir mão da discussão, da troca de experiências intelectuais, da visão em trezentos e sessenta graus da sociedade, do entendimento do outro. Fica mais cômodo e fácil repetir abobrinhas como “o Mainardi disse”, “o Jabor falou”. Beira o ridículo, tão ridículo quando, em certa oportunidade, um sujeito que estudou comigo, advindo de classe economicamente carente, mas hoje vivendo com um excelente salário estatal (e poucas horas de empenho profissional), vir me dizer que só o capitalismo constrói e o resto que se dane; ora, todo o direito de crer nisso, mas fazer discurso com o dinheiro do contribuinte no bolso? Faça-me o favor, é não olhar para o próprio espelho e passado, é não se enxergar como monstro. Mesmo um leitor de Fitzgerald ou Hemingway pode ser um idiota se não olhar para o lado, o outro, o próximo. Acabo me perguntando se tenho chance ainda de conviver suma sociedade dominada por verdadeiros picaretas da intelectualidade, que tentam prevalecer com suas falácias mofadas porque a maioria da população ainda está escravizada pelos pagodinhos, pelos jornais sem texto de cinqüenta centavos, pela mentiras editadas do casal global, pelo fascismo esportivo de Prado, pelos escombros mentais de Kamel. É isso: não tenho como tolerar qualquer sujeito que, ao se formar quase gratuitamente (não me venham com conversinha de grandes impostos pra a universidade pública) e ganhar muito dinheiro a posteriori às custas do Estado que o formou, ser porta-voz de raciocínios que já eram considerados excludentes há cinqüenta anos. Não se trata de desrespeito intelectual, mas sim revolta contra um aviltante mau-caratismo. O país está cheio de geniozinhos auto-declarados, confiantes nos argumentos fascistas das pseudo-revistas, assim como de críticos de Orfeu que nunca viram a Aurora de Murnau. Li que alguns mais sóbrios começaram a perceber que os Estados Unidos, com sua “sede” de democracia e liberdade no mundo (vide milhões de mortos no Iraq), sempre apoiaram a ditadura de Mubarak por trinta anos, sem nunca terem movido uma palha sequer contra o eterno país aliado. Por outro lado, os bobos-alegres hão de vibrar com o “apoio norte-americano à libertação do povo egípcio”. Ha, ha, ha! Felizmente ainda sou um democrata: li num sítio qualquer que Olavo de Carvalho considera “Aurora” um dos grandes filmes de todos os tempos. Isso talvez queira dizer que nem tudo está perdido ainda. Mas somente ainda.
Paulo-Roberto Andel, 18/02/2011
Hummm...eu te compreendo , amigo. E como...
ReplyDeleteMuita calma nessa hora.
Beijosss