I
Qualquer coisa que dure mais de vinte anos e que não seja ditadura, feito essas defendidas por Boçalnaro e seus cupinchas, e que também não seja vida vegetativa, vale a pena. Os vinte e um anos do Botafogo sem título, com minhas respeitosas saudações à massa botafoguense, por exemplo: não fosse a espera, o campeonato de 1989 seria apenas mais um. Mas foi diferente, especial, histórico. Além do mais, piada por piada o Francis Hime fez muito melhor na música – e ele é dos de General Severiano. Dia desses, um conhecido meu, alvinegro em tom de raiva, disse que o Fluminense era lixo; retruquei-lhe, lembrando que o lixo ao menos pode ser reciclado, o que não cabe ao Botafogo. Quem entendeu, riu. E hoje o Fluminense é o líder do Brasileiro.
O que importa dizer é que ontem me dei conta de ter perdido meu título de eleitor há pouco menos de vinte e quatro anos. Na verdade, me dei conta na semana passada, mas só agora é que me veio o tamanho do tempo. Por quê? Simples: não precisava dele para nada. Tem um número, uma assinatura e, até o pleito passado, podia-se votar tranqüilamente com a carteira de identidade. O número do título eu sempre usei apenas para a declaração do imposto de renda; fora isso, nada. Os anos foram passando, continuei votando em Darcy, Brizola, até o ato falho – e reconhecido – de Anthony, o RG resolvia tudo. Então, 2010 chegou com toda a sua modernidade e tecnologia; portanto, o título, que só tem o maldito número e a danada da assinatura, agora passou a ser obrigatório junto de outro documento identificatório com foto. Não discutirei a lógica do procedimento. Fato era precisar comparecer ao Tribunal Regional Eleitoral, o notório TRE, seção Copacabana, numa tarde de quinta-feira, para obter a segunda via, votar em outubro e exorcizar de vez esse fantasma neoliberal chamado peéssidebê.
Uma tarde de quinta-feira em Copacabana. Ah, meus vinte anos.
Quando votei pela primeira vez, o pessoal elegeu Moreira Franco. Como bem se ouvia no jingle, “o nome dele é Moreiraaaaaaaaa...”. Ia acabar com a violência em seis meses, mas não deu muito certo porque Maria Paula - a filha de seu vice, Waldenir Bragança - começou a namorar um dos bandidos mais perigosos do Rio, o traficante “Meio-Quilo” (sugestivo nome), braço-direito da então organização criminosa Comando Vermelho. Destruiu os Cieps. Fez o buracão do metrô na General Osório na marra e, mesmo sendo um querido do presidente Sarney, não conseguiu inaugurar nada. Terminou seu mandato sendo condenado a devolver ao erário estadual uns milhõezinhos, por ter publicado com dinheiro público o livro “Moreira: ele governou para todos”. Hoje, é o vice-presidente de loterias da Caixa.
Uma eleição apertadíssima. Darcy perdeu por milímetros. Tinha o Gabeira no primeiro turno também.
Oitenta e seis, noventa, noventa e quatro, noventa e oito... Recém-dispensado do Exército, eu mal imaginava que o Brasil só ia tomar prumo quando Lula-lá fosse realidade. E ia demorar a valer, como vimos nos capítulos seguintes desta maravilhosa história contemporânea do Brasil.
Oitenta e seis? Zico perdeu o pênalti, as papeletas amarelas ganharam o campeonato, Xuru me fez sair antes do Maracanã. E faculdade em Niterói, na Facen. Carteado na casa do Fred, ouvindo vinis trazidos pelo Caux. E lanches no Gordon com Marco. Só.
II
“Um bom lugar, Copacabanaaaaaaaaa...”
Por um tempo, tomei cisma do metrô. Tenho um bom motivo: anos atrás, o mesmo vagão em que eu viajava foi meio de transporte de uma mala, contendo uma cabeça humana. Sim, amigos, existe violência no Brasil há muito tempo, embora parte da turba hipócrita finja muita preocupação com Chávez e Fidel, sem imaginar que existe uma linha dois no meio do Rio de Janeiro.
Gosto de ver a rua, o mar. Mas o metrô é mais rápido. E mais apinhado também. A estação do Cantagalo, que ia se chamar Pavãozinho, mas a burguesia não deixou, dá uma boa caminhada do trem até a rua. O tribunal é na esquina seguinte, bem pertinho.
Duas seções eleitorais, lado a lado. O pessoal conversa alegremente. É Brasil, é Copa, é eleição. Uma quase jovem simpática vem me atender. Pede a identidade. Drama:
- O senhor tem multa a pagar. Não justificou a ausência em três eleições.
A partir de então, me tornei um apenado pela Justiça Eleitoral. Exatos R$ 3,51 por pleito ausente e não justificado, totalizando R$ 10,53:
- O senhor dá um pulinho no Banco do Brasil e volta aqui com a multa paga.
Por que faltei a três pleitos? Num, tinha disputa entre Conde e Cabral; noutro, Dotô Efeagá já tinha vencido; tem mais um que a história apagou.
III
A loja de cds usados está farta de material; a atendente não é das mais delicadas e nem entende do assunto. O dono da loja é um sujeito que não me conhece, mas já ganhou muito dinheiro às minhas custas. Eu compro cds, eu baixo cdes, eu gosto de música. Sou um extraterrestre.
Rock sem muita inspiração, jazz bastante caro.
Descubro que ali do lado tem uma Banco do Brasil. Boa!
Aos quarenta e cinco do segundo tempo, um disco com nome gigantesco, normalmente abreviado para “When the pawn...”. A charmosa lourinha magricela Fiona Apple, das grandes de sua geração, completamente ignorada em terra brasilis. Dez mangos. Cai! Quem puder, oução enquanto é tempo.
Para minha surpresa, uma agência bancária vazia, um caixa bastante educado e que me dá um desconto de três centavos na multa.
Não sou mais um apenado. Paguei minha dívida com a sociedade. Dez reais e cinqüenta. Sou um eleitor em potencial. Terei um novo título e Serra não vai gostar disso.
Para matar a fome antes do embate eleitoral, Kicê Lanches. Misto, cheeseburger e laranja batida. Por aqui, sairia uns dez contos. Em Copacabana, quinze. Glamour é outro papo. E outro preço.
IV
A moça emite rapidamente o documento. São tempos modernos. O chefe da seção faz alguma piada: viu um gordo de óculos azuis, naturalmente achou engraçado. Agradeço e me despeço.
O charme das ruas de Copacabana é âmbar. Pouco importa se o bairro envelheceu, se a decadência econômica prevaleceu. Nas vias, pessoas alternativas, antenadas; velhos, jovens, bebês, “adultos contemporâneos” (sabe-se lá o que isso significa). Gente diferente e, por isso mesmo, tão homogênea. Copacabana, menino.
A escada rolante do metrô não funciona. Tempos modernos.
À minha frente, na roleta, um jovem de terno, repleto de ternura, parece com dificuldades de ingressar o ticket. Quando passo por ele, percebo que é um viadinho – com tudo de simples que esta expressão não-pejorativa quer dizer. É Copacabana. Força de expressão somente.
Seria melhor ver as ruas, o mar. A pressa na volta para o trabalho exige agilidade.
Qualquer coisa que dure mais de vinte anos e que não seja ditadura, feito essas defendidas por Boçalnaro e seus cupinchas, e que também não seja vida vegetativa, vale a pena. Os vinte e um anos do Botafogo sem título, com minhas respeitosas saudações à massa botafoguense, por exemplo: não fosse a espera, o campeonato de 1989 seria apenas mais um. Mas foi diferente, especial, histórico. Além do mais, piada por piada o Francis Hime fez muito melhor na música – e ele é dos de General Severiano. Dia desses, um conhecido meu, alvinegro em tom de raiva, disse que o Fluminense era lixo; retruquei-lhe, lembrando que o lixo ao menos pode ser reciclado, o que não cabe ao Botafogo. Quem entendeu, riu. E hoje o Fluminense é o líder do Brasileiro.
O que importa dizer é que ontem me dei conta de ter perdido meu título de eleitor há pouco menos de vinte e quatro anos. Na verdade, me dei conta na semana passada, mas só agora é que me veio o tamanho do tempo. Por quê? Simples: não precisava dele para nada. Tem um número, uma assinatura e, até o pleito passado, podia-se votar tranqüilamente com a carteira de identidade. O número do título eu sempre usei apenas para a declaração do imposto de renda; fora isso, nada. Os anos foram passando, continuei votando em Darcy, Brizola, até o ato falho – e reconhecido – de Anthony, o RG resolvia tudo. Então, 2010 chegou com toda a sua modernidade e tecnologia; portanto, o título, que só tem o maldito número e a danada da assinatura, agora passou a ser obrigatório junto de outro documento identificatório com foto. Não discutirei a lógica do procedimento. Fato era precisar comparecer ao Tribunal Regional Eleitoral, o notório TRE, seção Copacabana, numa tarde de quinta-feira, para obter a segunda via, votar em outubro e exorcizar de vez esse fantasma neoliberal chamado peéssidebê.
Uma tarde de quinta-feira em Copacabana. Ah, meus vinte anos.
Quando votei pela primeira vez, o pessoal elegeu Moreira Franco. Como bem se ouvia no jingle, “o nome dele é Moreiraaaaaaaaa...”. Ia acabar com a violência em seis meses, mas não deu muito certo porque Maria Paula - a filha de seu vice, Waldenir Bragança - começou a namorar um dos bandidos mais perigosos do Rio, o traficante “Meio-Quilo” (sugestivo nome), braço-direito da então organização criminosa Comando Vermelho. Destruiu os Cieps. Fez o buracão do metrô na General Osório na marra e, mesmo sendo um querido do presidente Sarney, não conseguiu inaugurar nada. Terminou seu mandato sendo condenado a devolver ao erário estadual uns milhõezinhos, por ter publicado com dinheiro público o livro “Moreira: ele governou para todos”. Hoje, é o vice-presidente de loterias da Caixa.
Uma eleição apertadíssima. Darcy perdeu por milímetros. Tinha o Gabeira no primeiro turno também.
Oitenta e seis, noventa, noventa e quatro, noventa e oito... Recém-dispensado do Exército, eu mal imaginava que o Brasil só ia tomar prumo quando Lula-lá fosse realidade. E ia demorar a valer, como vimos nos capítulos seguintes desta maravilhosa história contemporânea do Brasil.
Oitenta e seis? Zico perdeu o pênalti, as papeletas amarelas ganharam o campeonato, Xuru me fez sair antes do Maracanã. E faculdade em Niterói, na Facen. Carteado na casa do Fred, ouvindo vinis trazidos pelo Caux. E lanches no Gordon com Marco. Só.
II
“Um bom lugar, Copacabanaaaaaaaaa...”
Por um tempo, tomei cisma do metrô. Tenho um bom motivo: anos atrás, o mesmo vagão em que eu viajava foi meio de transporte de uma mala, contendo uma cabeça humana. Sim, amigos, existe violência no Brasil há muito tempo, embora parte da turba hipócrita finja muita preocupação com Chávez e Fidel, sem imaginar que existe uma linha dois no meio do Rio de Janeiro.
Gosto de ver a rua, o mar. Mas o metrô é mais rápido. E mais apinhado também. A estação do Cantagalo, que ia se chamar Pavãozinho, mas a burguesia não deixou, dá uma boa caminhada do trem até a rua. O tribunal é na esquina seguinte, bem pertinho.
Duas seções eleitorais, lado a lado. O pessoal conversa alegremente. É Brasil, é Copa, é eleição. Uma quase jovem simpática vem me atender. Pede a identidade. Drama:
- O senhor tem multa a pagar. Não justificou a ausência em três eleições.
A partir de então, me tornei um apenado pela Justiça Eleitoral. Exatos R$ 3,51 por pleito ausente e não justificado, totalizando R$ 10,53:
- O senhor dá um pulinho no Banco do Brasil e volta aqui com a multa paga.
Por que faltei a três pleitos? Num, tinha disputa entre Conde e Cabral; noutro, Dotô Efeagá já tinha vencido; tem mais um que a história apagou.
III
A loja de cds usados está farta de material; a atendente não é das mais delicadas e nem entende do assunto. O dono da loja é um sujeito que não me conhece, mas já ganhou muito dinheiro às minhas custas. Eu compro cds, eu baixo cdes, eu gosto de música. Sou um extraterrestre.
Rock sem muita inspiração, jazz bastante caro.
Descubro que ali do lado tem uma Banco do Brasil. Boa!
Aos quarenta e cinco do segundo tempo, um disco com nome gigantesco, normalmente abreviado para “When the pawn...”. A charmosa lourinha magricela Fiona Apple, das grandes de sua geração, completamente ignorada em terra brasilis. Dez mangos. Cai! Quem puder, oução enquanto é tempo.
Para minha surpresa, uma agência bancária vazia, um caixa bastante educado e que me dá um desconto de três centavos na multa.
Não sou mais um apenado. Paguei minha dívida com a sociedade. Dez reais e cinqüenta. Sou um eleitor em potencial. Terei um novo título e Serra não vai gostar disso.
Para matar a fome antes do embate eleitoral, Kicê Lanches. Misto, cheeseburger e laranja batida. Por aqui, sairia uns dez contos. Em Copacabana, quinze. Glamour é outro papo. E outro preço.
IV
A moça emite rapidamente o documento. São tempos modernos. O chefe da seção faz alguma piada: viu um gordo de óculos azuis, naturalmente achou engraçado. Agradeço e me despeço.
O charme das ruas de Copacabana é âmbar. Pouco importa se o bairro envelheceu, se a decadência econômica prevaleceu. Nas vias, pessoas alternativas, antenadas; velhos, jovens, bebês, “adultos contemporâneos” (sabe-se lá o que isso significa). Gente diferente e, por isso mesmo, tão homogênea. Copacabana, menino.
A escada rolante do metrô não funciona. Tempos modernos.
À minha frente, na roleta, um jovem de terno, repleto de ternura, parece com dificuldades de ingressar o ticket. Quando passo por ele, percebo que é um viadinho – com tudo de simples que esta expressão não-pejorativa quer dizer. É Copacabana. Força de expressão somente.
Seria melhor ver as ruas, o mar. A pressa na volta para o trabalho exige agilidade.
Copacabana, um bom lugar para se passar, nem que seja por hora e meia veloz.
V
Metrô lotado às três da tarde. Não faço questão do assento.
Honrei minhas dívidas com o Estado Brasileiro.
Vinte e quatro anos sem título eleitoral. Por quê?
O fato é que a escrita acabou.
Oitenta e seis, noventa, noventa e quatro. Meus pais não eram felizes, mas vivos. E eu tentava fazê-los felizes. Eu tinha irmão. Tinha a turma da faculdade. Tinha uma promessa de bom emprego. Tinha um amor-eterno de meia hora de Tatiana. O rádio era Legião Urbana, Paralamas, Black Crowes e programa de jazz do Jô. Eu tinha título. Eu não tinha o maldito certificado de dispensa de incorporação.
Havia vida. Hoje, ainda há.
Apenas diferente.
Coisas morrem, coisas nascem. A vida é num vão.
Paulo-Roberto Andel
É, escritor...andar pelas ruas com a sensibilidade a flor da pele.
ReplyDeleteOntem, eu e meu interessantíssimo marido estávamos a falar dessa sua ímpar sensibilidade. Até nos emocionamos e... hoje? Vcê me aparece com esse texto para confirmar (mais e mais uma vez) que é um mestre nisso.
Beijos beijos beijos
A vida é num vão.
ReplyDeleteA cada dia que passa percebo mais a veracidade dessa sua frase que termina outro belo texto.
Vou usá-la por aqui,
abraços.
Tudo bem... 24 anos sem título eleitoral ...Pra que título, se não temos candidatos à altura do nosso "título"? Você não pode ficar é sem escrever um dia, sequer,aqui.
ReplyDeleteBrilhante, Paulinho.
Beijos
E.T. Já voltou a voz???
Caríssimo Andel, li não lembro onde que estão aprovando (já aprovaram?) uma lei que acaba com as multas por não votar, ou seja, permanece a multa por não ter título, mas, depois, não será preciso comparecer em cada embate. Ouviu alguma coisa sobre isso? Seu texto está perfeito, como sempre. Abraços, Pedro.
ReplyDeleteDiga, poeta, tudo bem?
ReplyDeleteVoltei das rápidas férias.
Não sobe de nada a respeito da novidade das multas. Ao menos desta vez, tive que morrer em 10 mangos. Nada de alienação: é que me recusei a votar em FHC e noutra eleição, com Conde disputando com Sérgio Cabral. Teve mais uma, com algum reacionário envolvido, creio.
Bom, ontem vi FHC com todo seu nazifascismo na Gabi, provavelmente desesperado porque seu partido corre o risco de rodar já no primeiro turno.
Basicamente isso.
Braxxxxxxxxxxxxxxxxx