Tuesday, May 30, 2006

Gotham City, por um triz

Noite de outono gelada, éramos eu e Max a caminhar pelo negrume da Gomes Freire, avenida que já fez os encantos da capital e hoje, embebeda-se de nostalgias, decadências e um futuro que pode tanto ser de samba quanto de réquiem. E nossas vizinhas, lindas? Não pudemos avistar, dado o adiantado da hora. Silêncio perene da rua, nada de carros a não ser nos motéis da região. Pedestres? Quais?

Veio a delegacia. Uma viatura estacionada e, dela, surgiu um policial com seu fuzil à nossa esquerda. Levei breve susto; afinal, nós, cariocas, por mais que vivamos uma guerra civil silenciosa que alguns insistem em esconder, ainda não estamos acostumados a fitar fuzis com naturalidade, feito fossem o chope dourado da felicidade ou a mulher amada. Outro policial, outro fuzil. Atento para a saída do terceiro homem, um talvez meliante, de olhos assustados e punhos algemados. Era um preto novo, de seus poucos vinte. Parecia aterrorizado. Não saberia dizer se era um assassino, um ladrão, um golpista ou mesmo um preto – que, nesta terra, ainda é motivo para quase prisão, mesmo que tentemos veladamente ocultar o assunto, para não revelarmos nossa mais áspera face, a de sociedade perversa, fria, cínica, despreocupada com a grande maioria das gentes, preconceituosa e racista, pois. Os homens da lei também eram pretos, ou negros se o racismo inverso assim exigir; contudo, pretos diferentes, pretos em defesa da lei. E mesmo que estivessem mais do que certos, capturando um perigoso bandido, passou-me pela cabeça uma das cenas típicas de outro século, a do preto fugido, quando era reconduzido pelo capitão-do-mato ao seu dono. Não seria analogia barata, há resquícios de coisas assim em todas as terras que percorremos nesta capitania, como se eternamente estivéssemos condenados a viver como se fosse naquele modelo.

O horror foi de um instante, um triz, uma vírgula. Logo viria a próxima esquina.

Ledo engano.

Eram sons de sirenes. Ambulâncias vermelhas.

Demo-nos por conta, havia um sujeito no último andaime de uma obra abandonada na rua da Relação. Um candidato à morte voluntária, tal como eu fui um dia, feito cada um de nós por quase um segundo. Dezenas de pessoas ocupavam a rua, havia engarrafamento, confusão. Um sujeito perto de nós contou uma história, a de que seria um moço sem casa que, acolhido pelo pastor de uma igreja, roubou-a com um comparsa que foi preso – denunciado, ameaçou acabar com a própria vida. Verdade ou não, eu e Max aceitamos a premissa.

Houve quem gargalhasse com a possibilidade da queda do sujeito, mais do que real. Alguns gritavam de perto da portaria virtual, pediam que pulasse – e não arredavam pé dali, donde desconfiei que eram pouco afeitos às leis da física, na condição de potenciais vítimas terrestres de um suicida.

Nós fitávamos tudo de certa distância. Logo ao lado, o “Caveirão”, veículo de combate que, teoricamente, é um instrumento de paz para populações carentes vitimadas pelo tráfico vizinho. Controvérsias à vista, creio.

Outro triz surgiu em minha vista. Eu lembrei do dia em que, ainda menino, vi corpos voarem em chamas do edifício Andorinha, o mesmo que hoje dá bons dividendos ao meu amigo de arquibancada, Max. Eu era um garoto e vi as mortes pulsando a todo instante. Recordei meses antes, quando três mulheres dependuradas por uma mangueira de incêndio, em um prédio da Senador Vergueiro, não resistiram e espatifaram seus sonhos no asfalta, tudo por obra de um louco incendiário.

Não havia fogo. Gelo, sim. Frieza, necessária quando a vida está no limite.

Enquanto o pastor e amigos subiram nos escombros para tentar dissuadir o possível suicida, um bombeiro subiu lentamente os andaimes. A lentidão de quem tem certeza da vitória, mesmo num momento como aquele, onde tudo parecia féretro. Houve um golpe, o bombeiro imobilizou o sujeito, os dois com a vida em risco. Uma vida foi salva, mesmo que efemeramente. Por mais estranho que pudesse parecer, e é, os mesmos que gritavam ao desesperado para que pulasse, aplaudiram o salvamento. Eu compreendo, pois rezo a cartilha de Enrico Bianco, onde só o que realmente importa no homem é a contradição.

Quando o espetáculo trágico se desfez, sem o final talvez esperado de maneira mórbida, os populares começaram a retirar-se. Max me disse do brilhantismo do homem, daquele que pôs a cabeça em prêmio para salvar o desconhecido: não sabíamos dizer quanto ganhava por mês, se tinha filhos, se a esposa em casa sabia que ele atrasara-se para o jantar para resolver um pequeno pepino profissional. Em seguida, o amigo se foi para sua Barra, sua Beverly Hills carioca sem suingue sangue bom, contrariado.

Eu desci a rua. Sozinho. Não havia mais risco. O preto novo foi encarcerado, o quase morto renasceu. Foi tudo por um triz.

A morte, sempre tão sombria e certa de sua vitória, ali naufragou.

Um ou outro bobo, quase todos devem ter ido para o bar, fazendo pilhéria do caso.

Meu silêncio tomou-me de assalto. Era tudo Gotham City, sem Batman, Comissário Gordon e nem mesmo a espetacular Mulher-Gato.

Só.


Paulo Roberto Andel

Rio, 42º

Sete horas (PM.) e a cidade ainda arde.

A tarde resiste bravamente e retarda a chegada da noite.

A cidade é um labirinto onde eu ando e sinto em cada rua, em cada esquina que dobro, o calor (também da sua alma, da sua gente).

Caminho por entre as ruas fechadas pelos arranha-céus e preso a essa geometria reta, esbarro nos vértices e arestas que desenham sua assustadora beleza. Verticais edifícios que quase tocam o céu, que recortam e cobrem o céu azul, com suas paredes, misto de vidro, concreto e ferro, parecem esmagar as pessoas apressadas.

Procuro o infinito e não encontro, tudo é extremamente finito.

Numa rua longa, meus olhos quase colados pela poeira e suor, descobrem um atalho e enxergam numa fresta de céu, a figura esférica da lua, que surge repousando sobre um prédio, cheia e ainda amarela. Parece guardar um pouco do mel que roubou do sol que ainda há pouco clareava e aquecia o dia.

À medida que caminho, olho fixamente pra lua que vai se escondendo atrás do prédio como que inibida, e olho, e caminho em direção a ela, que se esconde totalmente.

Agora estou no meio da cidade e não existem mais atalhos.

O céu agora só existe sobre minha cabeça.

A cidade ainda é linda e já esfria. A cidade é absolutamente encantadora em sua capacidade de mistura do antigo com o moderno, do asfalto com o morro, na mistura das raças, do executivo com o ambulante, etc. E as mulheres? Ah, as mulheres... ! (isso merecia várias linhas a mais)

E o cafezinho carioca? E o chope?

O dia teimoso cedeu enfim lugar à noite.

Meu corpo, já cansado do calor e do suor do longo dia precisa dormir... Acho que só resisti aos 42º devido à beleza que vi e vivi.


Por Jocemar Barros, 30/05/06

Monday, May 22, 2006

O invencível verão

Sobraram ainda, creio, alguns momentos a serem usados nos próximos vinte dias, bem como alguns últimos momentos divertidos. Mas o verão começa a dar o ar de sua despedida, começa a dizer um "até breve" que não chega a soar como "adeus". As estações são assim, passam velozes em nossas vidas e, se não estamos devidamente atentos, podem escapar pelos dedos. Todas têm o seu importante valor; contudo, o verão é bem lembrado pelo seu brilho, pela sua perseverança, pelo azul sorridente de seus dias.

Imagino e espero que o verão tenha sido bom para você. Para nós, não foi intenso como outros; para mim, foi pouco e escasso. O verdadeiro verão deve ter crianças nas praças sem grades, moças lindas a desfilar nas orlas claras, gente feliz nas tabernas entre conversas fiadas e chopes dourados da felicidade. É preciso ver as pipas avoarem em ventos ligeiros dos bairros da Central. Urge que espalhem a fraternidade, ternura, carinho e esperança pelas esquinas, calçadas e travessas, pelas alamedas e vielas. As vilas e os condomínios ficam mais próximos do que o normal. Os poetas devem deixar fluir a sua verve, tão verve quanto dos escultores e pintores, dos homens de cinema e teatro, dos artistas do futebol. O bom verão toma emprestadas as flores da primavera e as refresca com alguns dias do outono, tudo para temperar o amor que surge de um beijo à beira-mar, no portão da casa ou na piscina. Esperamos do verão o rigor da paixão, a disciplina do caráter, a firmeza do excelente humor, o clarão da luz que acompanha os homens de bem, tudo temperado pelo balanço que os pianistas impregnam o samba - sim, o samba bom, o samba que aquece os corações perfeitos.

O verão, este que já despede-se, foi escasso para mim. Não tenho mais tempo para viver intensamente as coisas que disse antes nestas linhas. Não tenho mais tempo para as pipas nem para a verve, chopes não são mais freqüentes à minha mesa. Moro longe das praças queridas e meu amor desapareceu feito certa brisa leve. Devo ser ranzinza, posso ser mesquinho, tendo à mediocridade; entretanto, nada disso abala minha saudade do bom verão, um verão pomposo e metropolitano, cheio de promessas e tentativas que pudessem um dia dar certo. Queria a criança chamada eu de volta, para que me guiasse pelo pensamento de que somos nós mesmos que construímos as estações e, por isso, podemos transformar cada estação a nosso bel prazer, de acordo com nosso espírito livre. Queria por que não tenho, mentiu quem disse que querer é poder: na verdade, antecipo-me ao outono que já vai chegar, trazendo folhas ao chão e mocidades independentes para ocupar os espaços urbanos, prateados com pitadas de chumbo.

Daqui a vinte dias o verão será a saudade de todos os que o viveram bem e foram felizes - estes dele falarão aos quatro cantos e à rosa dos ventos. Para mim não sobrou nada, passou e senti um vazio por não vivê-lo como deveria e poderia.
Cabe-me contar as folhas do chão, as nuvens de chuva e as flores que surgirem até que surja um novo verão, uma nova promessa, um novo nascente que me faça sonhar. Como todos aqueles que, neste, tiveram um invencível verão.
Paulo Roberto Andel

Réquiem para o inimigo


Ouvia um disco de orquestra e admirava o cartão postal que se desenhava em sua janela, numa tardinha de céu brilhante aos pés do Cristo Redentor: ao largo, uma jovem babá cuidava de um bebê feliz, homens de bem faziam trovas de verbo no bar ameno de esquina, uma mulher doce e de melenas alouradas passeava em sua bicicleta e, incrivelmente para os dias de hoje, meninos jogavam botão na calçada. Eis que tocou o telefone, e a voz embargada tinha algo de soturno a dizer:

"- Ele morreu, amigo. Sei de suas desavenças, mas era preciso que você soubesse mesmo vocês sendo inimigos. Ele morreu há cerca de duas horas; não estava doente e parece-me ter sido algum mal fulminante. De qualquer forma, quando tiver notícias sobre o funeral eu lhe passo. Congratulações e uma boa tarde."

Dizem que mau presságio em telefone só vem de madrugada e você sabe que não é bem assim. Ele também: embora fossem inimigos de morte, ficou em silêncio de limbo durante alguns instantes e interrompeu o bom andamento da orquestra na vitrola eletrônica. Pensou no inimigo e, mais ainda, no tempo em que o julgava ser seu amigo. Afinal, conviveram juntos por várias temporadas, atravessaram mares e tinham sempre suas imagens associadas por muitos da comunidade. É certo que tinham divergências e pensamentos diferentes, mas tornaram-se próximos talvez pelo bom-humor, pela velocidade de raciocínio, pela vizinhança e por mais uma série de características que permitia a terceiros concluírem, com rigor, que tinham muito mais semelhanças do que talvez pudessem gostar. Lideraram viagens, foram a casas de tolerância, duelaram garbosamente em tabernas, contestaram gêneros musicais e partidos políticos, viram os sóis de Ipanema e - há quem ainda diga - dividiram ao menos uma vez as mesmas mulheres, em carreira solo. Não se alinhavam, enfim, mas estavam perto. Certo dia brigaram para sempre e alguém desconfiou de traição da suposta amizade, mas o motivo verdadeiro era um punhado de tostões. Tostões que não resolveriam a vida de um ser humano, tostões que não permitiriam entender o pôr-do-sol ao lado da doce e desejada mulher amada, tostões que não pagariam muitas contas nas tabernas onde o chope dourado da felicidade é farto. Foram adversários fatais para sempre, e por motivo torpe. Fizeram os piores papéis que os homens podem prestar-se: trocaram ameaças, apontaram defeitos um do outro pela primeira vez, praticaram baixeza por moedas baixas. Nunca mais se viram e, a partir da despedida de instantes antes, a reconciliação tornara-se impossível.

Devolveu a música para a sala. Sentou-se e olhou para o teto brilhante. O inimigo veio-lhe à tona: parecia estar no sofá, na mesa de jacarandá ou na varandinha, dizendo velhas bravatas, rindo e celebrando um brinde. Só que não estava, e isso lhe trouxe um momento de grande desconforto: a morte em si tinha deixado um triste; contudo, mais ainda foi a certeza do nunca mais, a constatação de que as armas nunca mais seriam baixadas mesmo tendo a guerra terminado. Outra dor que lhe veio foi ter-se arrependido do que não disse, pois era - e é - pessoa de altivez consagrada, donde deveria ter partido uma reflexão mais profunda para que, se não voltassem à suposta amizade dos tempos de outrora, pelo menos jogassem a belicosidade no mar salgado. Num suspiro, percebeu o quanto é tola e rude a falta de fraternidade que, ali, fazia-o de alvo doloroso. Por que briga, por que ódio, por que desamor? A vida é mais do que isso, muito mais e sempre.

Caminhou lentamente para a varanda, e reviu os trovadores do bar bem como os meninos do jogo de botão. Admirou outra menina bonita que passava ostentando sua beleza estrangeira. Silenciou-se ao som do piano que surgia do disco, em contrapartida à orquestra de antes. Quis que sua mulher amada adentrasse o apartamento e lhe desse um beijo como antes, e ela não o faria porque dorme noutro lar que não lhe pertence. Virou-se para o lado e viu na outra esquina sinais de mocidade, feito a que tinha nos tempos em que o inimigo agora morto era apenas um rapaz de bem.
Pensou nas suas certezas e, sob a desolação dos constrangidos, atestou para si próprio um lema triste: de certo por ali, apenas o nunca mais.

Friday, May 19, 2006

Grandes avenidas

Temo as grandes avenidas.
Reconheço suas imponências diante de nós, pobres humanos que a elas servimos feito um enfeite de bolo. Entendo suas existências, tão necessárias para que o dinheiro faça da cidade a sua célula-mater. Sei de suas importâncias para o dia-a-dia de muitos que vivem pelas peripécias desta Guanabara tingida por sacrifícios. Mas eu não gosto das grandes avenidas.
Tenho motivos.
Um deles é o de que grandes avenidas não pedem passagem, simplesmente fincam base numa região e pronto: que o digam os moradores de uma favela erguida aos pés da Presidente Vargas, ali estabelecidos há quatro ou cinco gerações - e nunca receberam um tostão pela cessão de suas casas. Outro é de que grandes avenidas não importam-se com seus moradores ou ocupantes, principalmente aqueles que têm apenas a marquise como condomínio e abrigo: passam-se as décadas e lá estão os mesmos braços estendidos em busca de migalhas para a sobrevida infame, ora jovens, ora envelhecidos pelas mazelas da rua.
Grandes avenidas não comovem seus transeuntes a ponto de cativar-lhes em prol de solidariedade: basta que alguém tenha um mal súbito e caia no chão; todos param, observam a dor humana, a tragédia, a prévia da morte, tudo como se estivessem diante de um filme de terror - exceto um ou outro desavisado que burla as leis do cão.
Grandes avenidas estão cheias de pessoas apressadas, engravatadas, sedentas pela corrida do tempo, várias vezes com muito a fazer e muito pouco a produzir, trôpegas pelos restaurantes e lanchonetes onde raros são os que têm a ousadia de conversar com o próximo.
Grandes avenidas atraem grandes carros em grandes velocidades, e isso rima com tragédia em alguns momentos de semanas atarefadíssimas. Os motoristas precisam chegar rápido, embora não se saiba exatamente para quê; os pedestres também correm em concorrência. Todos correm muito e vivem pouco: a vida já é tão rápida e curta, para que encurtá-la com economias inúteis?
Grandes avenidas têm vendedores humildes, camelôs, engraxates de todas as idades, jovens secretárias, mensageiros, auxiliares, executivos, professoras de sexo, malandros sórdidos, gazeteiros e mais um batalhão de humanos: porque não interagem feito a sociedade que devia ser construída no século XIX e hoje, já no XXI, ainda não está firmada?
Grandes avenidas estão cheias de sirenes a tocar, assustando os calmos.
Grandes avenidas sufocam os que precisam chegar e sair dos lugares em horários padronizados pelos dinheiros.
Grandes avenidas incentivam o asfixiante e gélido transporte subterrâneo sem paisagens, sem árvores, sem elementos, sem vida, apenas tons de preto a fazer as janelas de féretro.
Grandes avenidas só passam por praças gradeadas e proibidas.
Grandes avenidas não ecoam as canções de Dorival ou João, nem de Hermeto ou do Maestro Jobim; por isso, reservo-lhes respeito, amor nunca. Afinal, nas grandes avenidas sobressaem os pequenos personagens.

A madrugada precoce

Chove.

Este lugar é de um silêncio enorme, talvez imaginariamente entrecortado por canções de ouvir Carole King ou Marina Lima, ambas campeãs de execução radiofônica nos programas de música soft que aconteciam nas rádios de freqüência modulada, basicamente por volta das dezoito horas. Carole e Marina são cantoras da chuva, dos tempos nublados, do tempo ameno e da atenção a melodias doces. Agora, pela noite, o verde escuríssimo das cortinas entreabertas serve de tensa moldura do céu azulado de Copacabana, o mesmo céu que excita gentes à beira-mar, traz força a fé dos que rezam em janelas e que serve de telhado vazado para indigentes – hoje, mais tristes pelo molhado.

O silêncio é democrático, ressalte-se. Há barulho. Pouco, baixo, mas suficiente para ocupar o ambiente cheio de luzes apagadas. Na sala, quadros bonitos expressando uma arte que eu não sei explicar. Todos estão próximos de livros, muitos livros. Parecem viver todos ali em plena harmonia, feito um só conjunto. Tem também uma vitrola antiga acoplada à outra que foi moderna até outro dia, discos ao redor em profusão. Discos, livros, pensamentos.

Já que tenho a liberdade de escolher um, ei-lo. Dave Brubeck, o lendário jazzman ainda vivo e perto dos noventa, primeiro branco a liderar a parada de jazz na história, contraponto ao racismo convencional. Louve-se o seu preciso piano contrapondo ao sax inacreditável de Paul Desmond. A capa é coloridíssima e, sem querer fica em contraste com beleza turva do conjunto de cortinas, decorações e o céu.

Não é tão tarde, mas foram todos embora. No quarto, Teresa dorme o sono dos justos, que acomoda as pálpebras que agora escondem aqueles olhos incríveis. Queria dizer-lhe algo quente e especial mas não sei bem ao certo, desisto temporariamente; queria ter continuado continuado o sexo e gasto mais horas em beijos no ventre, cansou. Teresa está cansada, esgotada. Talvez fosse importante que descêssemos e caminhássemos um pouco na calçada larga, acompanhando aquele zig-zag fantástico que consagrou Copacabana para o mundo, as pedras portuguesas que fazem ondas aos pés da areia. Talvez fosse saboroso que encontrássemos o pessoal no Gordon, rir do enorme Canguru em sua porta. Mas nada faremos, pois Teresa dorme e eu vivo.

Os discos e os livros são herança de Dona Marília. Foi embora antes do tempo, muito antes do devido, desesperançada pelo fim do Seu Marcos – que também retirou-se de forma um tanto quanto apressada e inesperada. Marcos filho já não mora mais aqui, desde que se enlaçou com Fernanda há uns três anos.

Engana-se quem acredita que a tristeza é hóspede permanente da casa; no máximo, entre uma e outra lembrança física da morte, descrita num velho som ou texto, o restante é contente. A juventude da turba da Santa Úrsula ajuda a trazer alegria. Eles gostam de carteados, de jogos de tabuleiro, de bebidas ligeiras; riem e contam boas histórias, sabem línguas e autores, cidades e hábitos. Não gosto quando fazem a sala de Amsterdam barata, mas é deles mesmo. Creio que não façam por mal, é coisa de jovem. Desconfio que não gosto apenas desse único momento, o resto é de uma tranqüilidade acolhedora. Simpatizo com eles, suponho que me achem um mais velho, experiente, acreditam ingenuamente que tenho muito a lhes contar, vã esperança. Ainda não sabem que aprendemos truques todos os dias e nunca é tarde.

Tudo ao mesmo tempo agora. Penso em Teresa. Penso em seus sonhos e poesias. Penso em oferecer-lhe alegria, contar-lhe uma história especial, beijar-lhe a mão e também entregar uma rosa. Penso em levá-la para uma viagem, cobri-la de carinhos, sexo, companhia, aventura. Penso em tratá-la permanentemente como mulher e não uma oportunidade ocasional. Gostaria de amá-la mais do que posso. Gostaria de ser somente dela. Era indispensável namora-la, cativá-la, dar-lhe todo amor que houvesse pelas esquinas, tabernas, a praia, o parque e o cinema.

Ouço o jazz ecoando pela casa e buscando as janelas, como se quisesse multiplicar-se pelos arredores. Há um Brubeck e um Desmond fazendo contrapondo com os vestígios noturnos da Atlântica. Alguns notívagos desfilam na avenida, devagar e suavemente. Teresa dorme e tenho remorso. Eu preciso dar-lhe o dia e a noite, o céu e o mar, o verde da esperança e o branco da paz celestial, o sorvete e o uísque, as vitaminas e a erva. Eu preciso dar-lhe o amor do qual carece injustamente. Não tenho nada de sobra, nada de útil que fosse digno de olhos tão brilhantes. Preciso aprender como fazer música doce a tilintar em seus ouvidos. Remorso é ver seu repouso tranqüilo, suave, sereno.

Deitada em berço esplêndido, onde dorme Teresa agora?

Cansada, repousada, esplendidamente nua, o que imagina Teresa em seus sonhos mais íntimos?

Tenho um gole de bebida fina à minha disposição. Um silêncio cortado por jazz. Pensamentos nublados sob um céu que promete dias de brilho.

Teresa dorme.

Está nua e cativante. Pele clara e fresca. Seios lisos e cabelo solto. Pés recolhidos.

Ao fundo, o piano é denso, o saxofone é cortante. No imaginário, crio um trio com Carole e Marina.

Reflito sob o luar. Teresa tem beleza e poesia, ambas profissionais. Eu sou um amador.

Chove.

Conversa de botequim

Houve uma quarta-feira de azul turvo, aquela nem tão recente em que nós, sempre nós, em nosso refúgio fincado na mesa de bar, havíamos elegido para desafogar mazelas, culpas, medos e até sorrisos, perante a vida soturna que levamos na condição de brasileiros. Nós, brasileiros e pensativos, brasileiros e pobres, brasileiros e com dificuldades, brasileiros alegres.

Nossa mesa oficial era no segundo andar do bar, tanto por ser mais perto dos banheiros quanto por permitir o doce balanço das jovens estudantes de Direito, que iam e vinham a todo instante. Nada provocativo ou insinuante por parte delas, nenhuma abordagem de nossa parte, apenas vistas e curvas encontrando-se no ar. Nada que causasse fúria em alguma namorada, esposa ou equivalente masculino. Ao chegarem os drinques, celebramos vida, saúde, gentes e, cada um intimamente, o fato de podermos ainda brindar vivos feito como se estivéssemos numa taberna de outros séculos e lugares. Brindes e brindes.

Por mais que tenhamos ao longo destes anos forçado a máxima atualização possível, procurando sempre viver de presente e não de passado, em eventos desta natureza sempre acontece alguma louvação a nostalgias, saudades, coisas que ficaram para trás e não necessariamente precisavam ter sido perdidas para o sempre, com exceção das memórias. Daí que alguém recordou dos “trotes”, talvez o Claudionor. Sim, os trotes. Hoje em dia, vem um noticiário qualquer e mostra que, numa festinha de “trote”, alguém morreu ou aconteceu algum estupro. Nossas festas eram de diversão pura, tranqüila e serena. É claro que ninguém gosta de ser pintado com tinta verde e rosa se não for Mangueira de coração ou punk de atitude; assim, compreendo eventuais rusgas e desconfortos de outrora. Agora, bater, matar, estuprar? Inviável aos nossos corações. No máximo, beijar alguma garota não tão abençoada pelo esplendor da natureza, tudo bem escondido – e assim, evitar seis meses de gozações dos colegas. Amigos, o mundo mudou. Depois, com a justa função, em algumas instituições de ensinos, criaram o “trote ecológico”, o “trote social” e mais uma saraivada – outro na mesa, talvez o Zé, falou disso como uma bonita atitude para tirar a “lama” dos veteranos das faculdades mas, por outro lado, soava como uma clara brecha para mostrar que nós, brasileiros e trabalhadores, brasileiros e pobres, dependemos sempre de um esforço ou indicação para agir em prol do “ecológico” ou “social”. Dito e feito.

E o dinheiro? Ah, o dinheiro. Quantos tempos um dia empenhamos em estudos, livros, calculadoras, provas e papéis almaço? Tudo pelo bendito dinheiro, o dinheiro de comprar um apartamento, de pagar um veraneio, de trocar uma tevê antiga, as responsabilidades que aumentam à medida em que “amadurecemos” e nos tornamos “adultos”. Dinheiro para juntar, dinheiro para casar, e mais dinheiro ainda para se separar. O Paulo lembrou de que este mundo onde vivemos não era o que nos prometeram um dia, cheio de parcelamentos automáticos em contas de banco, prestações com juros sempre superiores do que as registradas nas máquinas de somar, produtos cada vez menores nas prateleiras dos supermercados - disfarçando a velha hipocrisia de “não” se aumentar preço mas “adaptar” as quantidades. Quando começamos a estudar, queríamos também dinheiro, mas satisfação também. Não éramos um bando de lunáticos capitalistas sonhando com Wall Street; bastava-nos a construção de um modesto patrimônio para viver, ajudar os pais, ter algum filho e uma esposa amorosa. Falavam que era “importante ter faculdade”, poderia ser garantia de um bom emprego – o que, infelizmente, todos os institutos de pesquisas governamentais ou privados sabem desmentir com muita facilidade. Nós, garotos, brasileiros e quase estudiosos, brasileiros e pobres, quando chegamos à nossa casa de estudos, mal tínhamos um tostão furado nos bolsos. Um conhecido nosso comprou um jaleco de escola técnica para poder ir de ônibus diariamente sem o pesado fardo do preço abusivo das passagens, o que deu certo e eu apoiei, digamos, como uma “contravenção positiva”, se me permitem a licença. Éramos uns pobretões, mas ríamos de tudo, divertíamo-nos a valer e quase estudávamos, tudo coisa de outro dia e, de repente, ali estávamos nós a divagar sobre a importância daqueles tais dinheiros. Continuamos pobretões? De certa forma, sim.

Do lado de fora, o céu de azul enegrecido com suspeita de chuva a caminho dava um tom de Gotham City ao centro da cidade, com seus prédios gigantescos, suas gentes apressadas, seus meios e fins.

Pedimos a pizza de sempre, grande e barata, cheia de queijo e rodelas de tomates. O Zé bradou sobre futebol, contra o Flamengo, contra a saudável “ditadura da maioria”, que é mesmo verdadeira quando se trata do esporte bretão. O Flamengo tem mais torcedores por todo o Brasil; conseqüentemente, tem mais simpatizantes entre jornalistas esportivos e, em certos casos, a paixão supera a razão, criando times fantásticos mediante contratações improváveis e revelações juvenis inexistentes. Eu entendi, mas achei que não era coisa do Flamengo, não, e sim do Brasil. Creio que alguns de nós, brasileiros e sofridos, brasileiros e enganados, somos sempre movidos a vãs esperanças: a política, a faculdade que pode garantir um bom emprego, o Flamengo. É um conjunto, não um fato isolado. No meio do caminho, gritamos sobre gols roubados, cartolas funestos e campeonatos onde impera a bagunça – ou seja, amenidades brasileiras.

O Márcio contou da experiência que teve ao se apaixonar por uma garota seguidora do Evangelho. Desaprovava por completo as normas da igreja que passou a freqüentar por intervenção da namorada, mas estava num dilema: ou continuava o romance que tanto lhe deixava feliz, ou terminava de vez. A condição da amada e dos pais era ser membro da mesma igreja. Terrível. Eu pensei com meus botões de plástico, que não morrem, porque o amor tem que enfrentar revezes absurdos, beirando o universo kafkiano. E nós, na velha mesa, vivendo hoje os momentos felizes de ontem, contando algumas lamúrias do agora e, feito quase todos nessa terra, desejando remoçar quinze anos, mais ou menos. Foi bom saber que Márcio é forte, é lúcido e saberá lidar com essa intempérie conforme o passar do tempo; que o Deus dele permita-lhe conduzir sua fé sem abdicar de seu amor.

Amor?

Sim, o amor aconteceu. Breve e efêmero. Amor de vista. De repente, pela escada do bar, subiu uma morena. Mas não era uma morena qualquer, daquelas que nós, brasileiros e chauvinistas, brasileiros e machos, por vezes apreciamos em rápido olhar numa rua, numa fila ou banca de jornais. Era uma morena estonteante, alucinante, alucinógena. Branca de pele, preta de vestido, mais preto de olhos e óculos. Lábios visivelmente colossais em batom róseo, altura em torno de metro e setenta, palpito. Calamo-nos. Fomos silenciosos por um instante, um silêncio de amém, de vivacidade e típico do visitante de museu quando se depara com a obra de arte.

Uma belezoca.

Não teve jeito. Com aquela bela mulher de seus vinte e pouquíssimos anos adoçando as vistas, um soco golpeou nossos crânios e balançou nossas cabeças, fazendo-nos voltar no tempo, o tempo de nossas divas da academia. É, “amadurecemos” mesmo. Vários nomes. Carla “Coelhinha”, Valéria, Lavínia, Luciene, Ana Paula. Claudionor fez uma pergunta que me fez pensar, algo sobre quem seria os jovens enfeitiçados de hoje pela morena que subiu a escada, assim como fomos um dia pelas divas dos tempos idos? Imaginei que, exceto um ou outro de gosto à frente de seu tempo, poderiam ser todos. Pedimos mais chope e pães de alho, para deleite de Márcio e desespero de Zé. Na hora do oitavo brinde, a moça voltou ao salão, rumo à descida da escada. Nunca é demais ressaltar que se tratava de um colosso, com o devido respeito. Brindamos e suspiramos, brindamos e fitamos, brindamos e a admiramos enquanto ela desceu para o sempre. A posteriori, mergulhamos em vários assuntos: texto, museus, política, cinema, puteiros. Como em toda conversa excelente, não chegamos à qualquer conclusão unânime que fosse.

O Paulo, preocupado com o andar da hora, confirmou que tudo estava maravilhoso e que poderíamos ficar ali bebericando o tempo que fosse preciso, não houvessem compromissos de todas as naturezas possíveis para cada um de nós: pais, filhos, mulheres, amantes, chefes, jogos na tevê, noticiários pessimistas, filmes baratos. Portanto, pedir a conta era preciso, o pior momento de uma saudável noite de bar. Concordamos e aclamamos, Severino desceu e nos garantiu mais quinze minutos de conversa fiada. Tudo o que é bom passa rápido, a papeleta chegou. Colocamos os tostões à mesa, Álvaro fez câmbio com os dinheiros em espécie, um total de cento e pouco reais, mais de cinqüenta dólares. Rimos e rimos. Nos arredores, nenhuma morena em especial cruzando o salão. Chegou a hora da nossa descida pela escada, assim o fizemos e assim chegamos à rua. Do lado de fora, mesas brancas de plástico que não morre, todas ocupadas por um batalhão de estranhos: executivos, estudantes, profissionais, uma Babilônia humana e divertida, gentes buscando sexo, gentes buscando amizade, gentes à procura do nada. Despedimo-nos fraternalmente, especulando um novo encontro; alguns indo para um lado da cidade, outros na direção oposta.

Eu segui com meu grupo e desci a São José no sentido Rio Branco; de repente, ouvindo algumas baboseiras, olhei para o alto e vi a lua cheia, límpida, sem as ameaçadoras nuvens de chuva, impecavelmente em contraste com o céu de Gotham City. Não localizei o bat-sinal e muito menos o Batman. Havia, sim, um silêncio de mistério, encravado nesta pontinha do Brasil, cheia de brasileiros estudiosos e pobres, honestos e pobres, envolvendo o belo luar e me chamando a atenção para algumas coisas: a vida é breve, a alegria é pouca e rápida, o melhor a fazer é viver cada segundo e, se possível, na companhia de grandes amigos numa mesa minúscula de bar, entre goles e tragos - nem que seja para se lembrar de um passado simpático que, de certa forma, é o eterno presente em que vivemos.

Das mãos

Quando eu provei tuas mãos

Pétalas de rosas beijaram minhas palmas

Rosas, flores vivas

De brilhante gracejo

E poesia lunar

Quanto eu toquei tuas mãos

Teu calor me atravessou

Na lida, por dias

E me trouxe um suspiro

De beleza letal

Fulminante

Ardente

Doce nave a me transportar

Pelos novos planetas

Todo o Sistema Solar

De sonhos límpidos

Tão claros, precisos

Nada indecisos

Teu mel em pleno cais

Quando tuas mãos foram minhas

Não estavam decerto sozinhas

Trouxeram em si toda minha felicidade

Toda a mocidade

E o afeto que me reside e te procura

Ávido

Necessário

Cálido

Brilhante feito o pôr do sol

Sereno feito leve tom

Imagem de Arpoador

Teu melhor amor

Meu maior clamor

Iluminado

Definitivo

Salve(m) São Paulo...

São Paulo, a terra da garoa, com sua permanente nuvem cinzenta sobre os arranha-céus na vista de quem chega ao garboso estádio do Canindé, nas imediações da Rodoviária.

São Paulo, que recebe gente do Brasil inteiro sob a égide da fraternidade para alocar ora nos trabalho braçais, ora nas favelas horizontais e, se ainda sobrar mais alguém, nos presídios ou casas de detenção, isso se nenhum Fleury mandar passar fogo no melhor estilo Bushiano - desde que os traficantes não ordenem chacinas primeiramente.

São Paulo, das “mina” e dos “mano”, sempre na necessidade impávida de se criar onda explorando o melhor da língua mal-dita e mal-escrita.

São Paulo, sempre com a inflamada necessidade de posicionar-se perante o Brasil Na condição de Estado-Maior por força do dinheiro, como se ele fosse capaz de comprar tradição, cultura, classe e beleza natural.

São Paulo que tenta impor ao Brasil a diversão amena da vida caótica em shopping centers, sem árvores, sem mar, sem gente falando de poesia em beleza em mesa de bar. Pelo caminho, tome Daniel, Bruno e Marrone, Chitõezinhos, tudo no volume máximo porque se é pra esculhambar o ouvido, que se faça de uma vez.

São Paulo das meninas bonitas que não sorriem em seus ônibus e metropolitanos, suas ruas e grandes avenidas, cheias de gente orgulhosa do dinheiro que não tem mas que é incapaz de distinguir o próprio MASP (este sim, um oásis perdido em pleno deserto da cafonice) de um observatório da NASA.

São Paulo, com a face calhorda de Paulo Maluf, defendido por Dona Hebe Camargo às segundas-feiras na tevê, representando o que há de pior e mais atrasado na vida brasileira: a defesa da improbidade, o chacoalhar de jóias entre caros vestidos e paetês prateados misturados ao abóbora.

São Paulo, que ignora seu Arrigo Barnabé mas cultua seu Netinho. Que abandonou Itamar Assumpção mas enaltece Vavá. São Paulo, que não assiste a TV Cultura mas enche de brios o jabá dos cantores no Raul Gil.

Um dia, houve uma São Paulo grande e digna. A São Paulo de Adoniram Barbosa, de Noite Ilustrada, de Mário de Andrade, de Haroldo de Campos, de Zé Celso Martinez Corrêa, de Plínio Marcos, de Paulinho Nogueira, de Paulo Vanzolini. Esta, tinha futuro.

Ocorreu que os paulistanos estavam muito ocupados com seus jogos de futebol às onze da manhã, seus maiôs obsoletos perfilados na Rua Javari, sua ojeriza aos “baianos”, suas horas intermináveis com o campeonato mundial de lavegem de viaturas particulares, o Domingo Legal com as esquisitices homoeróticas de Gugu Liberato – cujo nome já é um trocadilho para tal. Por isso e muito, muito mais, não prestaram atenção ao redor do mundo e perderam o fio.

Acreditaram na bobagem de que tendo dinheiro, o resto se resolve. Charme não se vende no Morumbi Shopping, não se transfere nem personalidade nem elegância de uma hora para outra num banco qualquer da Avenida Paulista, um desses bancos que, volta e meia, lemos nos jornais como “quebrados”.

Simplesmente, não dá.

O dinheiro é muito importante para muitas coisas, mas para outras é de uma inutilidade enorme. Presença, beleza, poesia, charme, charme, como comprar isso? Ou você tem ou aplaude a quem tem, isso se não tiver eu teu coração um poço de mágoas – que dá câncer.

As pessoas caminhando nas ruas apressadamente, sem sorriso, tensas, ora fingindo estarem com pressa de algo muito importante a fazer, como se pelas ruas, esquinas e vielas também não caminhasse a desesperança de milhões de desempregados.

A tensão dos rostos tem motivos.

Olhar para o lado e saber que nem 450 anos e nem todo o dinheiro do mundo compram a sutileza, a categoria.

Escassez de berço, estampa, carisma.

Mas nem tudo está perdido.

Taí a boa e velha ponte aérea que não nos deixa mentir.

Cinqüenta minutos de avião que valem uma vida.

Ressalte-se que não se pode ouvir Chitãozinho, Giovanni ou Salgadinho. Pra chegar no Rio, ouve-se de Tom Jobim pra cima, já que o céu talvez seja limite, pois.

Memorial da adolescência

Num dia do nosso tempo, o velho Xuru de guerra me levou até a casa de outro grande camarada nosso, também velho de guerra e chamado Henrique. Era dia de conversa fiada da boa.

Nos conhecemos nos acolhedores e socializantes anos da juventude e, entre idas e vindas, fomos nos perpetuando até este novo tempo, agressivo e individualista por hoje. Acampamos por um bilhão de vezes juntos e, em cada um deles, tínhamos roteiro para redigir odisséias. Entretanto, marcante mesmo para mim é a enciclopédia de eternidades que escrevemos na casa de veraneio do Henrique, em Arraial do Cabo - que era um arraial de verdade, não esse de hoje, recheado de lutadores empenhados em humilhar ao próximo.

Arraial tinha lá as suas precariedades: luz e água, tais quais nos dias de hoje, eram mais do escassas. Porém, a cidade era habitável, silenciosa e romântica. O Carnaval abalava suas estruturas sempre, mas era de outro jeito. E viajar para lá em longa temporada, preferencialmente na baixa estação, era garantia de provar o gosto do paraíso: foi naquele maravilhoso lugar que comemorei a minha dispensa do exército depois de treze meses (mais tempo do que se leva servindo, eta), e que também serviu de pré-temporada para uma faculdade que haveria de ser bem longa, após quinze revitalizantes dias de folga. Dali também recordo que, noutros anos, ao falar da querida casa para uma linda mulher com quem caminhava pelas ruas de pedra, passei pela porta do inesquecível teatro; no muro da casa, tão amado e já corroído, tive um dos melhores beijos de amor da minha vida - e que fique por aqui o assunto, já que a respeitável senhorinha tem um matrimônio feliz com um conhecido que se julga o senhor exclusivo da situação.

E, como o maldito tempo insiste em não parar, passaram-se treze, quatorze anos e hoje estamos em outra casa do Henrique, em Laranjeiras. Assistimos um show de rock, igualzinho como naqueles tempos, exceto o fato de que antes era ao vivo e agora é pela televisão. Mudamos, claro. Somos quase jovens. Gastamos quilos e quilos de prosas e, num determinado momento falamos da casa, a velha geradora de grandes encontros e alegrias, que está a pique pela deterioração. Vive fechada em função de acordos familiares, desde a passagem da dona Maria, mãe do Henrique. Seria bom ter dinheiro, o velho vil metal que é tão sonhado e consagrado de tantos, só para arrematar a casa. Enquanto isso não acontece, a casinha querida fica por lá à deriva, perdida nas memórias e à espera de que seus heróis juvenis tenham um futuro a lhe reservar. Aqueles segundos são carregados de empolgação ao falarmos do quartel-general dos melhores dias de nossas vidas. As frases rápidas são incapazes de ignorar a felicidade que aquela velha gigante de pedra nos desperta.

Subitamente, uma pergunta corrói meu pensamento, feito um raio num campo limpo em dia de tempestade: "Quanto custa em dinheiro o memorial de nossas adolescências, dos melhores anos de nossas vidas?"

Os verões do Leme

É bonito ver o jovem casalzinho no banco de praia, aos pés da orla e perto daquele Forte inesquecível. Crianças ainda, devem estar perto dos seus quinze, dezesseis anos - a mesma idade que eu tinha quando voltava dali diariamente para minha querida casa, onde um delicioso almoço preparado por minha mãe me esperava. Jogava bola no Forte, corria, brincava e ria; depois ganhava até um beijo de Vera, o que bastava para voltar feliz pelo calçadão, mesmo que perto dos quarenta graus a enfrentar com a companhia de um mísero - e delicioso - picolé "Dragão Chinês". Depois tinha o danado do colégio, mas só de noite, bem mais tarde e com tempo limitado: afinal, a rodada de carteado no Gordon era vital e não podia esperar. Sabores de adolescência.

Não afasto meu olhar daquele amor.

Bonito o carinho daqueles jovens, com jeito de segundo grau e cursinho de inglês, em plena vivência do melhor de suas vidas sob a tarde do Leme. Amor de beira-mar, de chinelos e bermudas, de camisetas e pele beijada de sol. Bonito é o que o menino deve dizer, ao mesmo tempo em que toca uma das mãos da bela moça; é de se perceber que o texto dito suavemente, ao pé do ouvido, provoca-lhe um sorriso arrebatador, daqueles que só entendem os que já viveram as nuances de uma paixão. A outra mão do rapaz carrega um pequeno embrulho, um suposto presente trazido especialmente para aquele instante de paz. Instante de felicidade, onde rostos encostam-se delicadamente como se, na suavidade do toque, fossem capazes de tornar-se como um só. As mochilas ao lado servem de testemunhas fraternas, de companheiras sagazes que apóiam e apreciam aquele amor - que não precisa durar para sempre afim de alcançar a eternidade e que, se também não durar, já terá valido por toda uma vida permanentemente guardada num canto do coração. Com o amor que testemunho, basta-me ficar perdido pela vista de um céu límpido, em perfeita harmonia com o brilho do sol vespertino; poucos são os que ali aproveitam esta hora, preferindo resguardar-se para os encantos da noite que há de se aproximar. Mas esperar o escurecer é bobagem perante a paz que emana do abraço daquele casal de namorados, em próxima sinceridade e íntima admiração.

Beijam-se. Riem. Vivem o que lhes cabe naquela bela imagem emoldurada em minha vista do Atlântico. São jovens: não precisam discutir relações, planejar racionamentos, evitar viagens, pagar prestações, economizar em cartões. Tampouco é necessário pensar em ciúmes, em traições baratas, em distâncias ao lado, nada disso: a eles basta o roçar de rostos, o sorriso, o entrelaçar de mãos, o aconchego que um corpo propicia ao outro servindo-lhe de poltrona para apreciar o mar e o caminho dos pescadores rumo aos azuis do horizonte. Quem sabe se o amor há de prorrogar-se num cinema que ainda vive esperançoso em Copacabana? Quem sabe se o casal rumará ainda em tempo para a discoteca? Pode ser que visitem os amigos para uma jogatina de tabuleiros antigos ou distraiam-se numa partida de vôlei noturno. E daí? Seja qual for, o evento é o que menos interessa; tudo é pouco importante durante a vivência daquela paixão numa tarde do Leme, o mundo está de férias perto daquela linda menina loura que beija ardentemente o garoto moreno - e não somente com seus lábios de sonho, mas também com o olhar cintilante. Um olhar de querer bem, de querer ao lado, de espantar os males para respirar desejos e imaginar suaves carinhos. Tudo como ordena um doce amor num cantinho do litoral, abençoado por uma rosa e tendo o sol como guia do horizonte, que poderia abençoar qualquer casal em Arraial do Cabo, em Porto Seguro ou na Prainha mas que, pela magia daquele momento saboroso, é coroado pelo eterno mar de Copacabana.

É bonito ver o casalzinho no esplendor da juventude num intenso amor à beira-mar. E são bonitos os verões do Leme, sempre, causando-me a doce e fugaz ilusão de que a vida é sempre bela.


O supersônico

Um dia comum, uma manhã comum, eu e minha bola oficial de futebol em jornada pela Figueiredo Magalhães, uma passada na casa de Buja para convidá-lo a comparecer ao match – que nada mais seria do que dois garotos em ação esportiva, um chutando a gol e outro defendendo, com direito a revezamento.

Entrei na portaria e lá estava Aílton, o porteiro do edifício de Buja, irmão de Agnaldo, ex-porteiro de meu prédio. Era a única relação de nações amigas no caso: Aílton vivia nos perseguindo no condomínio, ora por causa das peladas de futebol em pleno corredor, ora porque uma ou outra amiga brincava conosco na escada sem a distância regulamentar. Anos depois, passamos a compreender seu honrado dever de repreensão ao nosso arsenal de molecagens. O elevador demorava uma eternidade para descer naquele dia e, sabe-se lá porque, Aílton saiu do prédio, talvez tivesse ido buscar um café; enquanto isso, eu tornava-me ali um terrorista em potencial, tanto quanto qualquer garoto de quatorze anos que tenha uma bola de futebol ao alcance, para desespero de qualquer objeto quebrável como espelhos, jarras e coisas mais. Talvez alguém por perto estivesse me vigiando e, por isso, mantive-me imóvel enquanto o elevador insistentemente continuava parado no distante décimo andar. E, subitamente, o inferno chegou:

“- TREAAAAAAAAAAAAAAAAAFFFFFFFFHHHHHSSSSSSSSHHHHHH!”

Eu imóvel, nem respirava. Nada de errado à minha frente, imóveis estavam o espelho e as duas portas de elevador. À esquerda, a portaria principal intacta. Havia algo destruído ali, mas eu nem tinha coragem de me mexer: a bola oficial estava em minhas mãos e eu não tinha feito nada, não tinha quebrado nada, não chutei nada. Só pensei por alguns segundos na vã justiça dos homens que, com absoluta certeza, me condenaria pela quebra de algo certamente feito de vidro. Lágrimas vieram ao meu coração: não ia ter futebol, voltaria para casa triste e teria que pedir dinheiro à minha sacrificada mãe, tudo seria cruel. Sei de um estrondo e algo que se quebrou em seguida, nada mais.

Virei para a esquerda. Era ela: a porta dos fundos, estilhaçada por nada, de cima a baixo; sem um toque, pancada ou chute, simplesmente nada. E eu ali sozinho, único culpado sem álibi de nada.

Certamente pálido, mirei o que restou da porta. E, para minha surpresa, quem já tinha dado a volta no prédio e estava ali constatando a desgraça era Aílton, o porteiro, o algoz de todos nós que, um dia, naquele prédio, insistimos em viver como garotos de nosso tempo. Mais surpreendentemente ainda, tinha visto tudo o que aconteceu e – pasmem – era testemunha de que eu não tinha feito nada!

“- Não se preocupe, Paulinho, aconteceu alguma coisa que estraçalhou o vidro, outras lojas aqui estão com vidros quebrados, Deus nos livre.”

Abandonei um quilo de suor frio na portaria e, ainda quase trêmulo, peguei o elevador rumo à casa de Buja. Lá chegando, encontrei-o vendo televisão e o noticiário indicava que aviões tinham quebrado a barreira do som no Rio de Janeiro, coisa da guerra das Malvinas – um confronto pra lá de esquisito em tudo o que se possa dele analisar. Em suma, com a quebra da barreira, não ficou vidro sobre vidro na cidade – e daí ocorreu, como em tantos outros lugares, a destruição da porta de vidro na portaria.

Fiquei sem vontade de ir para a praia. Buja entendeu naturalmente e ficamos na janela da sala espiando o que ocorria na rua, tudo enquanto jogávamos conversa fora: não faltavam vizinhos em outras janelas também, alguns esperando o apocalipse, outros uma chuva de dinheiro. Era apenas guerra, senhores, guerra pura e barata. Guerra incapaz de fazer entender a aflição de um menino quando pode ser acusado da quebra de um vidro na rua, ou mesmo da necessidade de chegada ao campo de futebol e exercer a “pelada” na sua essência, na melhor virtude.

Veio a discreta tardinha, carente de sol mas ainda que repleta de brisa, desci sem Buja mas acompanhado de minha bola oficial. Enquanto isso, o mundo de Copacabana respirava guerra. Homens e mulheres atônitos nada entendiam, eu pouco sabia: falar em guerra e conflitos militares não era o forte nos colégios. Perdi o futebol do dia, mas resolvi ir à praia só para ver o mar de perto; afinal, quem saberia dizer se por lá haveria uma Vera ou uma Isaura só para mim? Desci a rua impávido, sereno, ciente da minha imponência de atleta do esporte bretão, tendo em meu braço o escorte da “oficial dente-de-leite”. Senti-me livre, sem ter feito mal a ninguém, aliviado por não ter destruído a portaria sem querer.

E, de mais a mais, um menino a caminho da praia com uma bola de futebol não podia mesmo ser ameaça para ninguém. Perigo mesmo estava nos homens que matavam e morriam logo ali ao lado, carregando mazelas dos poderosos na fria Antártica.







A moça do retrato

Houve um verão e tive a sorte de conhecer uma moça belíssima, eram tempos da academia de matemática. Anos vieram e foram, gentes vieram e foram, deparei-me com ela pelo computador, meio moderno de rever as melhores coisas de nossas vidas.

Em conversa com o saudoso saudável amigo Maxwell, vim saber da alegria que teve ao revê-la no casamento de Arthur, onde tanto conversaram e ele tanto se encantou com suas impecáveis leveza, inteligência e beleza, todas indissociáveis, tudo num só pacote mágico. Eu não estive no casamento, não a vi pessoalmente, mas sou capaz de assinar embaixo das palavras do amigo pelo que vi.

Era o computador, era uma foto e a moça estava lá. Contemplei-a, tal como um de seus súditos. Se lá estivesse, restaria-me apenas tirar a espada da bainha, erguê-la aos céus e fazer uma cordial saudação à rainha.

Uma foto. Uma simples e singela foto.

Raras vezes vi em minha vida algo tão harmoniosamente encaixado pelas expressões da natureza, aquelas que simplesmente existem e nós não sabemos ao certo como explicar. Apenas acontecem e estão por aí a nos guiar ou nos fazer perder o caminho.

Uma pedra, quase plana, gigante com algum limo, daí que não de rolar – sabemos que pedras que rolam não criam musgo. Como toda pedra, muda. Amiga. Solitária cedente a quem nela pudesse descansar e olhar para o celeste do céu.

Árvores, pelo leste, grande vegetação pelo oeste. Sintomas do mar da tranqüilidade e pureza do ar.

Monte Verde.

Ao fundo, um céu de limpidez translúcida. Tudo azul, tudo de puro azul.

A moça tinha sentado praça na pedra. Estava em posição de energização, como se quisesse captar do ambiente os bons fluidos, os melhores, como se não os tivesse em si.

Calçava tênis claros, vestia conjunto de camiseta e short pretos, muito pretos e de charme inquestionável, combinando com a escuridão das lentes do par de óculos – o que lhe trazia um olhar indecifrável. Cabelos presos, por depois dos ombros. Braços perfeitamente alinhados ao tronco, mãos espalmadas para cima e apoiadas nas coxas. Brincos dourados de argolas, o pulso esquerdo em marrom sugerindo um relógio oculto e, no local, sem maiores funções práticas – ali não era momento de ver as horas, talvez nem os dias, talvez nem o tempo. Tudo muito ergonômico, assentado, delineado com capricho.

O rosto, de formosura infinita, ao contrário da convencional forma sorridente dos tempos da academia, ali tinha o ofício da seriedade. Ressalte-se, porém, que não era uma seriedade oca, formal, mas sim a do momento, a de perceber o momento e vivenciá-lo como se ali houvesse a plenitude da physis, incessantemente. A sobriedade que ali misturava beleza, poesia, serenidade, os melhores aromas, as mais doces e sinceras palavras mesmo diante da mudez.

Naquele momento e local, a moça deixou de ser humana por alguns momentos.

Emoldurada pela natureza, em seu auge, integrou-se ao ambiente como se ali estivesse esculpida há mais de cinco mil anos. Era tudo azul de céu, mais preto de roupa e a moça, em sua indescritível conjuntura de pele, postura e silêncio, na tarefa de conseguir embelezar o infinito já belo por si só. Conseguiu.

Imaginei-me também ali, também sentado com as pernas cruzadas na mesma mudez. Se pudesse, esperaria até que a moça dissesse alguma palavra, qualquer, qualquer que fosse. Seja o que dissesse, a mim só caberia dizer um obrigado, mesmo como uma obrigação, uma necessidade. Se não falasse, talvez melhor: fitaria todo o cenário pelo tempo que fosse.

Eu ficaria calado.

O pleno e mais absoluto calado, mais ensurdecedor do que cem mil pessoas bradando num estádio com a vitória do Tricolor.

Seria o silêncio de amém, da mais pura reverência a uma incomparável imagem da natureza, como que abraçando a indescritível garota presente, a mais do que bela amiga, a admirável irmã, a fraternal companheira.

O silêncio de quem, ao vê-la, quase desistiria do ateísmo para louvar a Deus.

Louvar também a quem construiu aquela obra de arte em forma de fotografia.

E só.

Alvorada

Acordei por volta das cinco e meia da manhã. Era dia de levar meu irmão para se apresentar ao garboso Exército. Bebemos um café rápido e descemos para tomar um táxi. Tarefa difícil nos dias de hoje: poucos motoristas atrevem-se a parar antes da alvorada para apanhar como passageiros dois sujeitos de casaco, mesmo que no inverno. Depois de cinco rápidas tentativas, conseguimos.

Simpático o motorista. Quando demos o destino da corrida, pôs-se a falar com orgulho do filho, um estudante que tem ojeriza ao serviço militar e que está estudando para concursos enquanto trabalha. Felicidade do pai era pouco, rapaz, na madrugada, trabalhando e radiante. A filha está em processo seletivo na IBM e isso o deixou feliz; pensei em Trino e logo concluí que mal sabe a moça o que lhe espera.

Estácio, Mangueira, Triagem, chegamos ao quartel. O Exército gosta das “pegadinhas”, era assim desde os tempos em que eu era um menino e cruzava a madrugada da Atlântica rumo ao Forte de Copacabana, cinco horas em pé sem grandes razões que se justificassem. Um dia era limpar parede, no outro era atender telefonemas. Uma vez me puseram fazendo as contas dos itens gastos na limpeza do quartel, divergi matematicamente de vários companheiros e isso até parece com algo dos noticiários atuais. Dezoito anos depois, uma fila enorme e uma faixa: “Bem-vindos ao Exército Brasileiro!”. Gostei. Deixei meu irmão na fila e torci para que não aplicassem-lhe humilhações que sempre acontecem nestes momentos, todas inexplicáveis e nenhuma capaz de realmente formar algum homem de verdade. Diversos garotos ainda vinham correndo pela rua Doutor Garnier, desesperados, o medo, a adolescência estampada. Garotos com suas mochilas, pastas, alguns mais abonados, outros humildes. Antigamente eu ia sozinho, hoje em dia tenho que ser companhia. Havia outros irmãos e alguns pais também. Madrugada que não seja na Zona Sul não é mole.

Seis da manhã, missão cumprida, desci o curso da rua. Nos tempos do escotismo resolvia-se tudo na bússola; achei que seria possível chegar até a estação do metrô pelo caminho que escolhi. Ledo engano. De repente, havia apenas uma fábrica, dois galpões abandonados e, no fim do horizonte, um trem passava. Rua vazia, sem carros, sem gentes, só um garoto vindo de longe. Aproximou-se, perguntei-lhe como fazer para chegar à estação. Disse-me que seria melhor seguir com ele e retroceder: o caminho da reta na rua daria numa favela cheia de “moleques marrentos” e que estranhariam “um senhor só de olhar o que vestia”. Aquilo me intrigou; segui o conselho amigo, recuei com ele e voltei para o quartel. Agradeci. Era um menino que não devia ter mais de vinte anos, com sua mochila tão surrada quanto as dos conscritos, a indefectível e não menos surrada camisa do Flamengo por baixo de outra flanelada xadrez, moda dos anos oitenta. Despedimo-nos. Ratifiquei o agradecimento: eu, burro velho, sem bússola, entrando na favela por engano às seis da manhã e o garoto me ajudando antes de partir para o trabalho.

Voltei ao regimento Pandiá Calógeras; sem entrar em questões relativas ao “heroísmo” do militar que batiza a unidade, gosto deste nome. Meu irmão, mais outros duzentos garotos, já tinha entrado e não havia mais fila do lado de fora. Dei a volta no quartel, adentrei a estação de Triagem e, nela, atentei de que era a primeira vez que eu buscava condução ali. Seis e meia da manhã, sozinho, parado na estação, tempo frio, sol abafado e um silêncio de amém. Veio o trem. Gentes e gentes que não mais acabavam. Lotação absoluta. Há quantos anos eu não pego uma condução de manhã? Não sei dizer. Houve quem dissesse que o metrô iria aliviar o sofrimento da turba, que não iam mais passar humilhação em ônibus lotados. Engarrafamento não há, sejamos justos – quando não dá problema ou enquanto o terrorismo ainda não nos descobriu. Um aperto só, tudo bem refrigerado. Mangueira. Estácio. Linha um. Aliviou.

Saltei na Central. Sete da manhã. Um batalhão de estranhos, gentes correndo pra todo lado. Algumas prostitutas, uns batedores de carteiras, milhares de humildes desesperados para trabalhar ou para encontrar trabalho remunerado. À esquerda, a velha torre da Gare Dom Pedro I, o velho relógio, o Ministério do Exército. Uma fita de um segundo, deparei-me vendo João Goulart berrando ali, as cem mil pessoas nas ruas, o Lacerda conspirando, o Brizola defendendo, todos muito mortos e a sujeira muito viva nas malas, nas contas numeradas e na escrotidão que assola o país. Gente, gente e mais gente à minha volta. Uma correria que é digna mas tira a humanidade, tira o amor ao próximo.

Apareceu o CACO, o velho de guerra das lutas estudantis. Ninguém mais luta, a não ser por si somente. Um bar na esquina, certa vez estive encontrando Raul ali. Podia ter sido semana passada, mas tem uns dez anos. O Moraes e o Hugo também estavam, suponho. Era uma birita matinal, daquela que os garotos adoram quando têm seus vinte anos – e deveria ficar por aí mesmo. Tinha algum salgadinho ou sanduíche ruim, era certo. Os tempos voam velozes.

Voltei a pé para casa. Em frente ao hospital Souza Aguiar, gentes lendo capas de jornais. Escândalos. Sujeira. Havia um jornal que circula em Caxias mas é vendido por estas bandas, a “Hora Popular”, se não me engano. Duas manchetes: uma, de um tarado pedófilo; outra, a foto de um corpo em putrefação com uma bala na cabeça, história de cemitério clandestino na Baixada. Dizem que o brasileiro não gosta de ler; se é facto, porque se apinham nas bancas em busca de uma notícia qualquer? Gostam sim. Deveriam ter mais acesso à Drummond e Braga, não a fotos de corpos podres.

Cheguei em casa. Fui ver as notícias da TV. A putrefação é outra. Caráter. Segunda chamada do café. Hora de trabalhar.

Dez da manhã, meu irmão continua atolado no quartel. Minha sala é cheia de silêncios. Mandei um beijo para Cris, não falei com Max.

Olhei para trás, vi o velho quartel, a corrida desesperada da garotada, o menino me ajudando na entrada da favela, as gentes apertadas no coletivo e correndo pela Presidente Vargas. A Central, o CACO, a banca de jornais, os curiosos, o corpo putrefato.

Era tudo um pouquinho de Brasil.