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Monday, August 23, 2021

Charlie, o mercenário da praia

Ele devia ter uns sessenta anos em meados da década de 1980. Ficou conhecido no Bar Sniff's do Shopping dos Antiquários, onde não ficava muito tempo no balcão, mas fazia graça com os clientes, especialmente os escoteiros, que ele de longe chamava com seu vozeirão e sotaque estadunidense temperado por soul e blues: "OHHH, SCOUTEIRSSSS". 

Talvez um metro e sessenta, boné e óculos escuros permanentes, barba às vezes. Camisa social, sunga e chinelos de dedo sempre. Rádio na mão para ouvir à beira-mar. Era um entusiasta da new wave do pagode: Almir Guineto, Zeca Pagodinho, Jovelina Pérola Negra, Fundo de Quintal.

Charlie sem dúvidas era um ser da praia. Seu ritual era diário: invariavelmente passava com sua cadeira perto de uma da tarde, voltando perto de oito da noite. Mantinha o bronze permanente na pele. Volta e meia era visto com garotas, muitas vezes negras fantásticas com vinte e poucos anos de idade, geralmente no Rondinella, esquina de Siqueira Campos com Atlântica, cujo dono era o ator Percy Aires, com muito sucesso na época. Enfim, um bom vivant. Sua vida praiana não indicava que tivesse algum emprego regular. 

Guardava um enigma: a cada três ou quatro meses, viajava para o Paraguai e voltava. Nunca falou nada sobre as viagens. É claro que os roteiristas do botequim já viram Charlie como um mercenário ou algo ligado ao "Guarani Way of Life". A grana vinha de algum lugar para tanta cerveja, praia, mulheres apetitosas e viagens. Alguém sugeriu que fosse um traficante de armas ou pedras preciosas, mas não dava pra levar a sério o coroa queimadaço de sol, apenas com camisa de botão e sunga diários, enfurnado em altos crimes. Ele ia e vinha, sempre pela Siqueira Campos, onde também sentava praça na areia.

Jamais falava de política, de suas viagens ou das maravilhosas garotas. Vinha, fazia uma piada, ria, bebia uma cerveja e se mandava. Na única vez em que se manifestou num debate político no Sniff's, deu pinta sobre as suspeitas no Paraguai; enquanto a turma do bar queria a cabeça do então presidente José Sarney, esperou os ânimos se acalmarem e cunhou sua frase definitiva quebrando o silêncio: "Sárnei is bon pessoa". Sabe-se lá o que quis dizer com isso. 

No bar e em toda a Siqueira Campos, ninguém sabia dizer como Charlie surgiu, e o mesmo aconteceu quando ele simplesmente sumiu. Nenhuma das garotas fantásticas reclamou nada. Muitos acharam que ele foi para o Paraguai de vez, sem qualquer comprovação. Mais de trinta anos depois, sua figura ainda é muito lembrada.

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