Tuesday, August 31, 2021

Any colour you like

Sete e meia da manhã na escola, 1977. Terceira série. Éramos eu, minha lancheira e minha mochilinha. Eu não lembro da turma, dos alunos, mas lembro do Seu Zé na portaria. Estudou comigo um menino de sobrenome Calegari. A professora se chamava Élida - me reservo ao direito de não chamá-la de "tia". Por alguma razão que não sei dizer, faz tempo demais, de repente ela começou a gritar na sala. Aquilo me apavorou, porque remetia imediatamente aos gritos de meu pai por embriaguez. Então chorei. 

Para quê? Eu no fundo da sala e a professora num acesso de fúria, dizendo que detestava crianças choronas e mimadas, que não aceitava aquilo. Eu tinha oito anos de idade. Foi minha última aula com Élida, felizmente: troquei de turma, na verdade pulei de turma, e também de endereço: a escola era a mesma, mas em vez da Rua Tonelero passei para a Rua Tenreiro Aranha. Muitos anos depois é que percebi não ter feito a primeira e a terceira séries, cursando apenas um bimestre da segunda. Precisei sair e voltar da escola, eu estudava sozinho. 

Desde criança chorei muito e quase diariamente. Geralmente sozinho, sem incomodar ninguém. Onze anos depois do faniquito de Élida, 1988, chorei de alegria pela primeira vez quando vi meu número cheio de algarismos no Jornal dos Sports, em março de 1988. Finalmente eu chegava à UERJ. Foi uma dureza: sem dinheiro, sem cursinho, sem trabalho, passei na prova e anularam o vestibular por fraude. Refiz e passei de novo. Meu choro foi na antiga sede do grupo de escoteiros, ao lado da Paróquia de Santa Cruz de Copacabana. Ia ter um almoço com bingo lá. Minha mãe apareceu, nos abraçamos e senti um orgulho enorme. Foi um domingo feliz e cheio de esperanças pelo que viria. 

##########

Mais de quarenta anos depois, quem se lembra da escola? Difícil dizer. Os garotos viraram cinquentões, os quarentões têm quase 90. 

O prédio de três andares teve outras finalidades e, mais recentemente, abrigou um hostel. Sobrou a fachada colorida, que lembra a capa de um livro meu, e uma faixa de anúncio comercial. E só. 

Ao lado, parece ser o Edifício Brilhante. Se for, ali morou a Gisela, que era uma graça. Na esquina tem o Big Bi, que sucedeu um pé sujo e a Casa do Pão de Queijo, inaugurada por Georgia Wortmann, musa do bairro e das passarelas. 

Uma da manhã de quarta. Se quiser, posso chorar à vontade. Tomei um milk shake de Ovomaltine, trabalhei até meia noite. Estou cansado. Bem cansado, mas o sol nascerá. 

Ao longe, estouram fogos em Santa Teresa 

@pauloandel

Friday, August 27, 2021

Aeroporto 19h

Jocemar Barros foi na direção das barcas e resolvi dar uma volta rápida. Parei no VLT da Carioca, vi que o cartão tinha um saldo favorável - pelo menos esse - e embarquei no sentido Santos Dumont, depois de ter desistido de ir ao Boulevard Olímpico. É um passeio maravilhoso. Meu ídolo Fausto Fawcett odeia o VLT mas eu amo de coração, falei disso hoje com o Lucas Bueno - você navega a cidade com todo o conforto, limpeza e um visual fantástico, exceto pelas lojas fechadas no Centro, imunes às pantomimas de recuperação sem um plano de emprego e renda. 

O SDU é ideal para pessoas como eu, que gostam de lugares vazios e pouca gente. Bom, na verdade tem muita gente mas desembarcando e se mandando, muitos aliviados porque têm dinheiro na conta mas passaram uma semana dos diabos na escrotidão lancinante do mundo corporativo. Sei do que falo: estive nele e algumas das pessoas mais falsas e abomináveis que conheci na vida estavam lá, às vezes rindo na sala ao lado. Que morram. Antigamente eu andava ali cheio de tensão, com medo de perder o voo, indo para reuniões nem sempre produtivas, com dor na coluna da viagem bate-e-volta. Perdi dinheiro mas ganhei minha liberdade, o que não tem preço. 

Já que não tem discos e livros, fui para a praça de alimentação deserta. Pensei em comer num restaurante a quilo, muito bom, mas a força do hamburguer me atraiu. Parei no caixa e vi que não havia funcionários, era interagir com o computador e fazer o pedido. Menos postos de trabalho, a apoteose da impessoalidade. A máquina pediu que colocasse meu nome e, por ele, aí sim uma funcionária me chamaria para entregar o lanche.

Minutos depois, "Paulo Roberto". Eu não pareço com um passageiro de voo. Ando de chinelos, bermudão velho, camisa preta rasgada e carrego dois pacotes de plástico preto. É divertido: ninguém imagina quem sou pelo que aparento. Pego a bandeja com o sanduíche, a batata frita e o copo para que eu mesmo pegue minha Pepsi. Sou um vitorioso: mesmo pobre, posso garantir meu lanche noturno num país onde  cento e dez milhões de pessoas provavelmente estão com fome agora à noite, o que é inaceitável exceto para alienados que ainda acham que está tudo bem. Inaceitável. 

Na mesa à noroeste, quatro caras bebem chope no quiosque da Brahma e ajeitam suas malas de rodinha, provavelmente se mandando do Rio no fim de semana, talvez voltando no próximo dia útil

Na mesa quase noroeste, uma garota tão bonita que me lembra Juliana, ou Larissa, que faz aniversário hoje. Bom, essas duas não se parecem em nada, exceto pelas belezas diferentes.

No balcão da lanchonete, a jovem bonita e com certo ar triste, que talvez seja cansaço pela maldita exploração capitalista. 

Lancho, vejo mensagens, fico feliz com comentários e olho para a frente. Quatro caras, uma garota e um vazio enorme. Gasto dez minutos e resolvo partir para o Uber Lounge. Esqueci de jogar na Loteria e perdi o horário, droga. 

Marina sai do trabalho cansada, trocamos mensagens, quero que ela chegue bem à casa da mãe. Eu a amo. Será um longo percurso. Queria que ela estivesse no lanche. Precisamos ter paciência. 

No meio do caminho até a saída, um garotinho bem pequeninho correndo, as irmãs um pouco mais velhas vindo atrás, ele cai no chão, ri e o pai logo o pega no colo, aí ele ri mais. As crianças nem sabem o bem que fazem a desconhecidos que nunca mais irão vê-las, só pela paz e felicidade que emanam. 

O Uber Lounge está lotado, cheio de gente impaciente. Não há carros disponíveis. A estupidez da inflação da gasolina está quebrando muitos motoristas. Tento por dez minutos e não consigo, então desisto e resolvo sair de VLT. Delícia. Uma breve corrida até a Carioca, salto e vejo a inacreditável loja da lanchonete na esquina de Almirante Barroso com Rio Branco fechada. Bom, do outro lado saiu a Caixa, é inacreditável. Antes disso, a dor é ver a Cinelândia às escuras, só o Verdinho funcionando, uma dor no peito ver o Amarelinho de portas cerradas. Parece o fim de uma era. Outro dia mesmo estávamos vendo filmes no Odeon e agora tudo é miséria. 

No ponto do táxi, um dos motoristas mais simpáticos de todos os tempos. Na breve corrida até a Cruz Vermelha, ele fala de sua jovem esposa, de não trabalhar mais no final de semana por cansaço e, apesar da aparência jovial para cerca de 60 anos, ele pretende aplicar botox em breve. Trabalhou na área de cosméticos por muitos anos. Me mostra uma foto com a esposa. Ela é bonita. Agradeço a viagem, um taxista realmente diferente. 

Na portaria converso com Davi, sempre educado. Pego o elevador vermelho, o mesmo em que desceram um dia os corpos de meus pais, mas nem ligo porque eles estão comigo de alguma forma. Mais mensagens da Marina, do Catalano, da turma tricolor. Por dez segundos, penso nas contas atrasadas e mando-as à merda: meus ídolos também estão duros. Acho que vou ler alguma coisa, porque ninguém pode levar a sério um escritor que não seja um leitor caudaloso. 

Oitavo andar, dez passos até a porta, silêncio pleno, estou em casa. 

@pauloandel.

Monday, August 23, 2021

Charlie, o mercenário da praia

Ele devia ter uns sessenta anos em meados da década de 1980. Ficou conhecido no Bar Sniff's do Shopping dos Antiquários, onde não ficava muito tempo no balcão, mas fazia graça com os clientes, especialmente os escoteiros, que ele de longe chamava com seu vozeirão e sotaque estadunidense temperado por soul e blues: "OHHH, SCOUTEIRSSSS". 

Talvez um metro e sessenta, boné e óculos escuros permanentes, barba às vezes. Camisa social, sunga e chinelos de dedo sempre. Rádio na mão para ouvir à beira-mar. Era um entusiasta da new wave do pagode: Almir Guineto, Zeca Pagodinho, Jovelina Pérola Negra, Fundo de Quintal.

Charlie sem dúvidas era um ser da praia. Seu ritual era diário: invariavelmente passava com sua cadeira perto de uma da tarde, voltando perto de oito da noite. Mantinha o bronze permanente na pele. Volta e meia era visto com garotas, muitas vezes negras fantásticas com vinte e poucos anos de idade, geralmente no Rondinella, esquina de Siqueira Campos com Atlântica, cujo dono era o ator Percy Aires, com muito sucesso na época. Enfim, um bom vivant. Sua vida praiana não indicava que tivesse algum emprego regular. 

Guardava um enigma: a cada três ou quatro meses, viajava para o Paraguai e voltava. Nunca falou nada sobre as viagens. É claro que os roteiristas do botequim já viram Charlie como um mercenário ou algo ligado ao "Guarani Way of Life". A grana vinha de algum lugar para tanta cerveja, praia, mulheres apetitosas e viagens. Alguém sugeriu que fosse um traficante de armas ou pedras preciosas, mas não dava pra levar a sério o coroa queimadaço de sol, apenas com camisa de botão e sunga diários, enfurnado em altos crimes. Ele ia e vinha, sempre pela Siqueira Campos, onde também sentava praça na areia.

Jamais falava de política, de suas viagens ou das maravilhosas garotas. Vinha, fazia uma piada, ria, bebia uma cerveja e se mandava. Na única vez em que se manifestou num debate político no Sniff's, deu pinta sobre as suspeitas no Paraguai; enquanto a turma do bar queria a cabeça do então presidente José Sarney, esperou os ânimos se acalmarem e cunhou sua frase definitiva quebrando o silêncio: "Sárnei is bon pessoa". Sabe-se lá o que quis dizer com isso. 

No bar e em toda a Siqueira Campos, ninguém sabia dizer como Charlie surgiu, e o mesmo aconteceu quando ele simplesmente sumiu. Nenhuma das garotas fantásticas reclamou nada. Muitos acharam que ele foi para o Paraguai de vez, sem qualquer comprovação. Mais de trinta anos depois, sua figura ainda é muito lembrada.

eus

eu mil vezes eu andando pelos escombros da cidade eu chorando pelos que choram e rindo muito sozinho eu sem grandes nostalgias mas vivendo o passado que vale eu com meus músicos muito mortos artistas e escritores muito mortos homens do jazz e do blues eu que não tenho grandes títulos nem patrimônios nem grande fama ou notoriedade mas vou me escorando ao lado das veias de asfalto cheias de automóveis eu que sou copacabana e centro sou candelária madureira eu sou 434 e 521 eu sou fawcett e caymmi e peter gabriel e bjork eu mil vezes eu do parque guinle ao parque lage do bangu shopping à orensana eu que escrevo versos tortos e desconhecidos e livros desordenados eu que gritei com rush rolling stones e joe cocker e paul eu cansado estropiado apaixonado pela mesma esposa há oito anos eu com meus discos e livros o resto não importa eu de agosto abril e qualquer mês eu de amor

@pauloandel

Sunday, August 22, 2021

Inca

Entre maio de 2004 e abril de 2005, estive diariamente no INCA como visitante, acompanhando meu amigo Xuru. Não foram dias fáceis, mas deixaram algumas lembranças alegres e tristes. 

##########

Alicia (pseudônimo) era enfermeira do Russo. Uma gatona: baixinha, morena, aparelho nos dentes, cabelos pretos longos. Ela vinha e já tinha graça do Xuru: "Ahhh, Alicia, se terminar esse noivado eu te peço em casamento" (ele era casado). Ela ria muito. 

Numa noite chego em cima da hora dos acompanhantes (consegui um crachá especial). Era tão em cima da hora que resolvi subir as escadas até o quarto do Xuru, em vez de esperar o elevador. Logo na segunda virada para o segundo andar, involuntariamente corto uma tremenda pegação perto da porta que levava ao corredor. Alicia, linda, com um dos médicos que atendia meu amigo mas não sei dizer o nome. Dei boa noite e tchau. 

Chegando ao quarto, contei o acontecido. Franquinho, o Xuru só riu e disse "Peço em casamento assim mesmo". Era linda a Alicia. Continuou como uma excelente enfermeira. Sorria para mim nas visitas, com a devida distância regulamentar. 

##########

Visitar a UTI do INCA é uma experiência forte, que exige frieza. Pior de tudo era ouvir o médico dizendo antes "Vocês, que são parentes, precisam ter todas as agilidades funerárias à mão". 

Entrei. No box ao lado do Xuru, havia uma mulher linda, cheia de aparelhos ao corpo que faziam a contradição de seu lindo rosto. Algo terrível. 

Entrei no box e, sei lá como, o Xuru me disse "Que chato a gatona aqui do lado". Se ele estava no leito e não levantava, como conseguiu vê-la? Ou se baseou em relatos de visitas? Não sei dizer. 

No dia seguinte, o box ao lado estava vazio. O ballet da morte já tinha se apresentado. Conversei com o Xuru, mas não falamos disso. 

##########

Certa vez, o Xuru parecia melhor e ficamos andando pelo andar, até entramos em um espaço que dava para a varanda - e de lá víamos toda a praça da Cruz Vermelha e arredores. 

De cima, com o belo desenho circular e à distância da sofrida população de rua, tinhamos uma vista inédita muito bonita e rara. 

Xuru vibrou com aquele panorama. E fazia doces planos de alta que nos ajudaram a sonhar por algumas semanas. Do alto, navegamos.

Tuesday, August 17, 2021

copacabana no elevador

Quinta-feira, talvez perto das 15h. Bloco E, Shopping de Copacabana, aka Shopping dos Antiquários

Você abre a porta e dá de cara com um paletó de lantejoulas azuis, uma cabeleira black e o bigode que, juntos, formam uma das estampas mais famosas do Brasil: a de Cauby Peixoto. Então dá boa tarde, recebe a réplica em voz de trovão e finge que está tudo bem porque em Copacabana ninguém se emociona com celebridades - só louvam Clóvis Bornay e Rogéria nesta terra. Fica em silêncio, o grande cantor não diz nada também porque não puxaria conversa com um garoto de catorze anos. Dois minutos depois, o elevador está no térreo, vocês saltam, Cauby passa na porta dos famosos Supermercados Leão e ninguém fala nada também (embora, claro, todos estejam diante de uma lenda da música popular brasileiras - e com um paletó de lantejoulas azuis!

Qualquer noite, depois das 23h

Você espera o elevador no térreo e, de repente, está a seu lado um dos grandes jogadores do futebol brasileiro: Rodrigues Neto, Flamengo, Fluminense, Botafogo, internacional, Seleção Brasileira, também no Ferrocarril Oeste da Argentina, onde ganhou o apelido de "El Negro Neto". 

Abre a porta e ele faz um cumprimento respeitoso sem dizer nada. Só que o cheiro não engana ninguém: rolou um pileque poderoso. Rodrigues Neto tem encarado dias difíceis: além de jogar, é o treinador da famosa Cooperativa do São Cristóvão. Deve ter afogado às mágoas porque não está fácil para ninguém. 

Quarta-feira, 11 da manhã 

Desce Dona Estela. Una oitenta anos talvez, com seu marido de uns trinta e cinco, Marcos. Um amor daqueles que não tinha tanta probabilidade assim. Ela vai lentamente a caminho dos Supermercados Leão, ele fica na portaria. 

O porteiro não perdoa: "Seu Marcos, a Dona Estela já ficou viúva sete vezes. O senhor não tem medo não?"

"Não, cada um tem um destino".

[mentira, tá se cagando de medo

Marcos dá tchau, vai para a Siqueira Campos e se manda. Por via das dúvidas, pegou o contato de uma mãe de santo, para calcular os novos tempos e, no pior cenário, fica de olho nas proximidades e desdobramentos plausíveis.

O GRANDE ATOR, 23:45h de qualquer noite

Carregando uma sacola de compras das Casas da Banha, jornais e um livro, o ator Walmor Chagas entra no elevador do Bloco E e sobe tranquilo para o 13° andar, sozinho e anônimo porque o porteiro, embora o conheça há tempos do prédio, não tem a menor ideia de quem se trata. 

Página eterna do cinema, teatro e TV, ali Walmor é apenas um condômino chegando em casa, num andar que possui 16 apartamentos. Cada um deles possui histórias, dramas, loucuras e contradições que cabem em Copacabana, porque é no bairro que tudo se mistura e contradiz o tempo inteiro. Walmor se alimenta delas para oferecer a sua grande arte aos brasileiros. 

O ator abre a porta do terceiro apartamento à esquerda do hall dos elevadores, larga as coisas em cima do sofá e vai para a janela. Vê a igreja em forma de cúpula lunar no terceiro andar do shopping, o quartel da PM e o posto de saúde. Carros passam em alta velocidade na Rua Tonelero, um ou outro 433, com certeza um 415, todos a caminho da beleza da Lagoa Rodrigo de Freitas. Há quase silêncio no bairro que nunca se cala.

Sunday, August 15, 2021

Copacabana Mon Amour 1998

2:25 p.m: no Sindicato do Leme em tarde nublada, alguns nacionais bebem chope pacificamente. Numa das mesas, Bolinha fica encantado com a beleza de Aline. No fundo do bar, em pé, encolhido com sua tulipa à mão, está um vizinho da casa: Zeca Pagodinho. 

4:15 p.m: o bicho pega no clássico de futebol de areia da Figueiredo Magalhães: Juventus e Bairro Peixoto jogam pelo campeonato com casa cheia no calçadão. Júnior, craque consagrado e símbolo do Juventus, acompanha o jogo e ouve piadinhas de torcedores do Bairro, cujas cores remetem ao Fluminense, amor do ex-jogador na juventude. 

6:30 p.m: uma turma conversa na areia perto da rede de vôlei no Othon, quando alguém recorda do frenesi na praia por causa do verão da lata - as pessoas loucas para conseguir o fumo do bom, algumas recorrendo até a olheiros para localizar as latas de ganja boiando no mar do Posto Seis. 

9:15 p.m: Xuru e Cler estão num carro nas imediações da praia com a Souza Lima, quando trocam ideias com Sharon, uma gata travesti do trottoir. A negociação parece que vai dar pé. Cler está confiante no amor de ocasião, a ser executado num muquifo qualquer da região. 

11:30 p.m: numa bela e espaçosa sala de jantar de um prédio garboso da Avenida Atlântica, o uruguaio Molina aprecia a vista da praia de Copacabana, mas sente certa melancolia porque lhe vem à mente a filha desaparecida anos atrás, depois de uma doença súbita e inesperada.

01:15 a.m: a vinte metros do grande apartamento de Molina, Ciano se vira como pode no banco de praça do calçadão. Está  em situação de rua. Não conheceu seu pai e sua mãe morreu quando ele tinha dez anos de idade. É uma vida de extremo sofrimento, que humilha, agride e dói. A madrugada é fria e cruel. Copacabana é um peito que precisa de muito, mas muito leite para resgatar sua enorme contradição entre o luxo e a miséria.

Saturday, August 07, 2021

copacabana é um peito

Cinco para as duas da manhã de domingo do Dia dos Pais e faz um frio do caralho já no Túnel Novo, preparando o viajante para ingressar na máquina do tempo e cair dentro de Copacabana. É impossível virar pela diagonal à direita e, na esquina, sacar o Cervantes fechado - ninguém em pé tomando chope ou comendo sanduíches honrados. Não se sabe quando, mas o Cervantes precisa voltar porque é um patrimônio não apenas do bairro, mas do país. 

Quem seguiu em frente pela Barata Ribeiro não se tocou em passar pelo espólio erótico da Prado Júnior, que mantém sua luta pela sobrevivência num mundo cada vez mais retrógrado. O certo é que, numa das quadras da Barata está Katia França, eterno símbolo de beleza do bairro, provavelmente fazendo nebulização devido ao frio barra pesada. Katia, que não é Kátia Flávia e nem precisava ser, imperou nas ruas de Copacabana entre os anos 1990 a 2000 - agora está em casa descansando e se recuperando. 

Perto dela, outra referência de Copacabana está em casa porque os heróis do bairro agora não estão mais nas ruas, mas sim fazendo arte em iPhones respeitáveis. Fausto Fawcett, o Fausto Borel, poeta maior do pedaço e tradutor da língua downbeat copacabanense - ou seria cobacabanista? Nense no sufixo, é Fawcett, é Fluminense das três cores imortais cheirando as veias de asfalto de Copacabana. Fausto disse recentemente numa live que entende a saudável decadência de Copacabana, mas que ela jamais superará a vocação multifacetada do bairro - e, lógico, ele tem sempre razão. 

Passa Katia e passa Fausto, perto da esquina com a Rodolfo Dantas - será? - ou era Ronald de Carvalho? - ninguém vai se lembrar da maravilhosa pizza Capri. Faz quase cinquenta anos, assim como do outro lado ninguém vai se lembrar de que o famoso Edifício 200 agora - melhor, há muito tempo! - é 194 e ninguém vê mais seringas nas calçadas em tempos de festinhas down by law. Tudo mudou. 

Um único botequim solitário com a TV ligada e os sobreviventes da boemia gelada esticam seus pescoços, torcendo pelo Brasil na final olímpica de vôlei feminino, enquanto os EUA nos castigam mas nós temos Fernanda Garay, gata negra voando e batendo incessantemente - Garay tem o quê das gatas das redes da praia de Copacabana de alguma forma. 

Seguindo em frente, depois do deserto da praça Cardeal Arcoverde, uma família inteira deitada na rua com um frio do cacete perto da Caixa Econômica Federal. As ruas de Copacabana têm a dolorosa verdade crua da escrotidão social, cuja equação nunca fecha. 

Três quadras depois, os moderninhos ocupam a esquina da Hilário de Gouveia no complexo etílico Pavão Azul, com suas pataniscas imperdíveis, chopes de alívio e a pequena sensação de que a vida pode ser melhor. Ok, estão indevidamente aglomerados, sabemos o que isso significa. Vamos em frente. 

Barata Ribeiro, 450, Parada de Copa. Os funcionários do Cervantes fazem os sanduíches viverem ali. São iguaizinhos. Se a entrada de Copacabana agora causa tristeza imediata com o bar fechado, pelo menos o lanche é capaz de resgatar a identidade da parada. 

Depois da esquina com a Figueiredo Magalhães, alguém é capaz de jurar que tem um carro parado com som alto, tocando "Babilônia Rock", o clássico de Lincoln Olivetti e Robson Jorge na trilha do filme "Rio Babilônia", também uma representação do bairro. O roteiro do filme é do escritor João Carlos Rodrigues, também uma cobra criada da Avenida Copacabana. Tudo em "Rio Babilônia" tem um certo aroma mofado e duradouro de Copacabana. Mesmo que o som do carro fosse apenas um exercício de imaginação ou sonho, não importa: ele é possível, porque mesmo que Copacabana viva a decadência, ela jamais será capaz de superar a tradição de bares e lojas que já morreram, de gente que deu o fora e de histórias que são muito maiores do que seus personagens. 

Então aparece na tela a Galeria Menescal dormindo em silêncio no primeiro sábado de agosto, bem gelado e, do outro lado da rua, os mais jovens sequer desconfiam o que foram ali a Modern Sound, a Billboard e o Bruno Copacabana. Uma quadra de sons e imagens que se perdeu. Não se pode vencer todas, talvez nem a metade.

Numa janelinha de apartamento quase na Santa Clara, o Brasil continua brigando com os EUA pela medalha de ouro no vôlei feminino. Estamos perdendo por dois a zero. Na quadra toca Kiss, com "I was made for loving you" e, se alguns cinquentões estiverem atentos, podem se lembrar do show que sacudiu o Maracanã em 1983 e que, claro, na saída lotou todos os poros notívagos de Copacabana. Afinal, o Kiss é a cara da Prado Júnior. 

Cinco a quatro para o Brasil no terceiro set. O pulso ainda pulsa. Agora vem a esquina de Constante Ramos com Barata Ribeiro, o cadáver insepulto da Sorveteria Bolonha, nenhum resto mortal da Farmácia Piauí e nenhum vestígio na calçada elevada de um dos personagens mais famosos do bairro: o mendigo Mister Éter. Quinze para as três da manhã, Dia dos Pais, as gatas do vôlei seguem na luta, Copacabana é um peito. 

Wednesday, August 04, 2021

5:40 da manhã

eu poderia ligar a TV e ver as olimpíadas ou completar meu texto no livro sobre Copacabana. finalizar o da Portuguesa, assim espero logo. mas a verdade é que eu não tou a fim de nada, praticamente nada, exceto ouvir canções no YouTube e respirar bem baixinho aqui para não romper o silêncio das quinze para as seis da manhã. 

eu poderia dizer que estou nervoso, triste, chateado, preocupado, ansioso, esperançoso e muito mais, mas estou é insone mesmo, ouvindo músicas de trinta anos atrás, pensando nas pessoas maravilhosas com quem convivi, em outras palavras, outro Rio, outro Fluminense, outras tantas coisas. tudo é rápido demais. 

eu gostaria de ligar o rádio, mas só tem a Cidade na internet agora. ou de pegar um livro do Ivan Lessa ou do Carlito Azevedo para ler, só que isso destruiria qualquer possibilidade de sono, com a luz em riste. 

em algum lugar de 1989, exatamente à essa hora, eu estava correndo do banho para o ponto do 434 na Figueiredo Magalhães, de modo a chegar às sete da manhã na UERJ - e nem sei porque a pressa, já que nunca tive uma aula por lá começando às sete, exceto com o saudoso professor Moisés - que adorava as garotas e dava aula em ponto falando e escrevendo sozinho, acreditem. nossas amigas eram lindas e a gente ria o tempo todo sem um tostão furado no bolso. hoje só restou o furo. 

em algum lugar entre 2008 e 2018 eu poderia estar suando frio porque precisava pegar um avião para Brasília, São Paulo ou Belo Horizonte, mas odiava fazer isso obrigado com todas as minhas forças. hoje iria tranquilo, mas não é algo que me apeteça. 

em algum lugar do começo ou suposto meio da Pandemia, eu estaria desesperado  porque estava trancado em casa e os dias pareciam pena privativa de liberdade. agora estou só preocupado. 

[ajeitar o tempo todo o carregador do celular para que cumpra sua função

talvez seja o seguinte: sinto saudade de coisas e pessoas que já não existem em meu cotidiano - embora as ame -, com saudade de um bairro que já não existe e, ainda por cima, com a covardia de sonhar aos 53 anos com o tempo dos 23. ou tudo isso só seja o pavor do silêncio lá fora em pleno início de dia sem pregar os olhos. ok, eu cochilei até umas três, mas foi pouco. 

também penso no quanto estamos mal parados: Sarney e Collor eram muito menos piores do que esse bosta que aí está, e isso é incrível. 

seis da manhã, quatro de agosto, bora ligar a TV e saber do museu de grandes novidades. julho já era, gastei doente. as contas estão arrombadas, as pessoas estão distantes demais, o velho boa noite foi trocado por um polegar desenhado. 

justiça seja feita: essa quarta-feira precisa fazer jus a um de nossos maiores medalhistas da história. Mutley, o fantástico assistente de Dick Vigarista. é um injustiçado. 

@pauloandel