Tuesday, February 25, 2020

para o verão que morre

o que me sobrou foi um par
de chinelos velhos e grandes
com eles, navego às ruas
sem pensar bem no futuro
nem no presente 
aterrorizante
e dou meus passos humildes
sem grandes conquistas
mas também sem falsos 
amigos
com seus discursos vazios
meus pequenos passos que 
não
me levam onde procuro
nenhum rastro de meus pais
meu irmão não dá um pio
de modo que são passos 
tristes
sozinhos, porém necessários
porque a vida é dos andarilhos
dos que atravessam muitas ruas
e colecionam nomes, fatos, sons:
as cores e pedras, a gente 
que passa
meus pequenos passos necessários
sem falsos abraços e risadas 
infelizes
mergulhando feito sangue nas 
veias
e artérias do que sobrou 
dessa cidade
o que me sobrou foi meu amor, que
tenho em hectolitros e toneladas
não existe sobrevivência sem
amor
apreço, bondade, solidariedade: 
o resto não passa de mentira 
oca
arrogância de corações primitivos
o supra sumo da vã verborragia
meu amor é um par de
chinelos grandes
que calço para caminhar rumo ao
outono
sem grandes vitórias, sem hipocrisia
sem trair quem ainda me
considera
dou meus pequenos passos 
confiantes
meus pés me desviam 
do mau caminho
a borracha não me deixa derrapar 
mais:
eu só preciso de um pequeno 
punhado

Saturday, February 22, 2020

Um bandido hot dog

Era fichinha nas noites de Carnaval de Copacabana - em que outro lugar poderia se pensar em alguém parecido, como se poderá entender? Esperava a hora dos grandes blocos e partia para o ataque. Roubava, furtava, mas sem agressividade ou violência, e só lhe interessava um único produto de roubo. Seu diferencial era que usava uma fantasia de cachorro quente, acreditem! 

Rolando nem precisava roubar. Era um psicopata. Tinha renda e trabalhava. Sua obsessão pelo crime vinha apenas nas noites momescas. Em seu inconsciente também havia uma profunda admiração pelo ator Ney Latorraca, que já relatou inúmeras vezes que roubava na feira para comer quando era garoto. Para Rolando, não bastava o fascínio pelo talento de Ney: era preciso também reproduzi-lo no cenário down by law, que misturado à atmosfera kistch de Copacabana, resultaria num cômico vilão de Carnaval. 

Seu maior problema era a atração por celulares  vintage, os da primeira e segunda gerações, longe da era dos smartphones. Então roubar e furtar era algo ainda mais difícil: que vítima ainda usaria um celular sem internet em 2019 ou 2020? Isso lhe fez sair de Copacabana em busca da folia em outros bairros, noutros carnavais, aumentando seu espectro de captação de celulares velhos. Todo o produto do roubo era guardado em casa, numa escrivaninha das antigas, e naturalmente não era lá muita coisa, no máximo uns cinco aparelhos em cinco folias. Meus amigos, o miserê chegou até o mundo dos crimes exóticos, ainda mais para um ladrão que só se interessava por celulares arcaicos.

Também tinha dificuldades para o crime quando estava fantasiado. Afinal, quando o cachorro quente ambulante chegava no pedaço, todxs queriam tirar fotos, abraçar, estar perto de uma picocelebridade instantânea. E Rolando, um psicopata vintage, via naquele mar de fotos e vídeos a negação da própria existência. Contudo, desistir não faz parte dos planos. Ele persistirá!

Copacabana é seu teatro de guerra, mas não mais exclusivo. Já esteve recentemente no Bola Preta, sem sucesso. Navegará pela Banda de Ipanema e pelo Simpatia, também pelo Suvaco de Cristo. Será um desafio ainda maior roubar celulares velhos mas regiões mais endinheiradas da cidade. E quando voltar para sua casa no Bairro Peixoto, só terá o sentimento de prazer cumprido se conseguir um "tijolão", daqueles de 25 anos atrás, que os milionários bregas dos anos 1990 adoravam ostentar. 

Rolando tem um pesadelo. Todo vilão tem um ponto fraco. A psicopatia sempre lhe traz à mente a figura de Robertinha,  uma jovem carioca que tem um belo aparelho celular vintage, mas que diante de seu ataque criminoso reage com um recipiente grandão de catchup na não, deixando-o banhado da saborosa mistura do creme de tomate com açúcar e condimentos diversos. A impetuosa Robertinha apavora Rolando de vez quando, em seus pesadelos, grita na hora do ataque "EU VOU ENCHER VOCÊ DE PURÊ, E SE ENCHER MEU SACO AINDA TE TACO UM MONTE DE PASSAS!". Quase sempre após vivenciar este pesadelo ou delírio, Rolando sai de onde estiver e apressadamente corre para a Sorveteria Bolonha, esquina de Constante Ramos com Barata Ribeiro, cinquenta anos de bons serviços. Pede um eggcheeseburger, um copo grande de mate da casa - delicioso -, lancha, tenta negar sua condição de cachorro quente humano psicopata, pede a Deus para perdoá-lo dos pecados que comete e morde cada pedaço do sanduíche como se fosse o último da vida. 

Pensa no próximo bloco, no próximo crime. E se Robertinha for de verdade? E se ela aparecer com um gigantesco potão de purê, será o fim? E se for um ameaçador tubão de mostarda alemã, o que fazer? A incerteza deixa o esquisito homem-sanduíche de Carnaval em processo de quase pânico. 

O que lhe resta é sair correndo da Bolonha, sorveteria e lanchonete clássica onde bem em frente ficavam a Farmácia Piauí, um clássico de Copacabana, além de uma antiga mercearia cuja calçada elevada servia de dormitório para Mr. Éter, o mais famoso mendigo da história de Copacabana. Desce a Barata Ribeiro, passa em frente ao mitológico endereço da falecida boate Crepúsculo de Cubatão, entra na rua Santa Clara antes de se deparar com as lembranças das eternas lojas de discos Billboard e Modern Sound - o Cine Bruni também -, não olha para trás, sobe a rua cheia de árvores, passa pela porta da Padaria Apolo XI - do outro lado da rua não está mais o porteiro Silério - a velha Casa Mimosa, e ganha os metros finais até chegar à Boca do Lobo, a galeria de passagem para o Bairro Peixoto, onde finalmente se liberta de suas obsessões e volta a ser um cidadão quase normal, em defesa da família brasileira, contra o comunismo e em favor dos smartphones. 

Robertinha é uma permanente ameaça para Rolando, o vilão vintage de ocasião. Tanto faz se é um holograma, uma fantasia ou uma jovem mulher de carne e osso. A possibilidade de ser ultrajado com quilos de purê em sua fantasia de cachorro quente faz Rolando suar frio. Ela é o terror que pode estar em qualquer lugar da cidade, mas que por razões óbvias tem o DNA de Copacabana. 

@pauloandel

(Livremente inspirado na engraçadíssima colaboração de Márcia Abreu do Nascimento)

Thursday, February 20, 2020

os bostas

tratemos todos os egoístas como os bostas que são. os covardes e preconceituosos, os pretensiosos, os pernósticos, todos eles merecem o desprezo supremo e o destino os colocará no cocho de direito. chega de estender a mão para os traidores, afagar os delatores, oferecer ouvidos aos pilantras. nenhum deles escapará de olhar para o teto do quarto numa noite quente e insone, pensando na própria escrotidão, enxergando um espelho turvo imaginário onde encontram a própria mediocridade cristalizada, sonhando com fama e poder mas com os olhos arregalados pela própria miséria d'alma, sabendo que podem enganar a tanta gente mas nunca à própria inconsciência. os ruins morrem sozinhos, pouco importando se estão cercados por uma multidão. todos os vigaristas enxergam a rudeza de seus espíritos diante da solidão. enganam-se os que pensam que o mal compensa: se não forem verdadeiros criminosos, assassinos, estupradores, gente que deixou de ser gente ou nunca foi, o remorso os corroerá víscera após víscera, ardendo no peito como um tiro devastador de fuzil. até para ser o esgoto da humanidade é preciso ter competência e talento - e quem disso não usufrui jamais terá o reconhecimento dos canalhas, apenas pena.

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toda mediocridade será castigada.

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os escroques não morrem, porque jamais viveram. apenas desperdiçaram tempo.

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para que ter medo se o futuro é a morte?

Tuesday, February 11, 2020

humanos

ao defendermos os
pobres os humilhados
e fudidos não somos
heróis não somos porra
nenhuma a não ser
humanos tão somente
humanos e mais nada
seres humanos ainda
respirando ar podre e
bebendo água imunda
mas humanos pensando
em pessoas que sofrem
por toda parte um mundo
a vida é poder ajudar um
outro é poder ser útil e
dizer um não à escrotidão
outra vez: não somos heróis
mas apenas humanos vivos
debaixo de escombros vivos
das respeitáveis corporações
tentando sobreviver ao caos
debaixo da grande explosão
do ódio que há de sucumbir