Wednesday, August 23, 2017

urbana

debaixo da sombra fria dos arranha-céus
há corações dilacerados
e mãos estendidas em vão: ninguém quer prestar atenção

homens de bem passam apressados
com suas gravatas importadas
e ternos muito bem cortados:

não há mais tempo a perder
quando se quer o Brasil de volta

- oh, retumbantes panelas!

o Brasil, a terra em transe
aquele outro, lindo e assassinado
com suas malas de dólares
e mortes a sangue-frio

choques de ordem e correção
a pátria amada de manchetes em pé
e mentiras na contramão

a cultuarem as senzalas modernas

os garimpeiros caçam pedras de morte
ao léu

a morte à vista sem constrangimentos

e passamos fingindo não ver

- estamos ocupados demais

ou acreditamos em um porco nazista
e aplaudimos um engomado calhorda

céus! céus! onde mora a vida?

debaixo dos arranha-céus há sempre
uma suntuosa estação de metrô
com seus trens cheios de cabisbaixos

escrevendo o que ninguém lerá

desprezando a vida, o amor, a fé:

- ordem e progresso são indiferença!

desembarque pelo lado direito
o que ainda resta do seu coração
dilacerado

@pauloandel

Friday, August 18, 2017

feliz ano nenhum

a violência aí está para estilhaçar o viço dos dias. ela sempre esteve, ao menos para aqueles que têm mantido seus olhares mais atentos a trezentos e sessenta graus em vez de trinta. ela sempre esteve solta, morando de aluguel no apart hotel dos olhares indiferentes, na opressão infame das comunidades carentes, sobre a mira dos fuzis covardes que estraçalham sonhos e trajetórias. a violência aí está diariamente embarcada na baía de guanabara ou deslizando pela via dutra. hospedada em confortáveis escritórios das grandes corporações, cujos prédios são batizados com nomes estrangeiros, e onde raramente se vê um negro ou nordestino que não seja em funções serviçais. lá está a violência em forma de mãos mendigas estiradas na calçada suja enquanto um executivo só passa perto do pedinte por obrigação. olhares, olhares, olhares de desprezo, de aparte, de afastamento. a violência é fácil de ser entendida quando algum boçal profere a frase “é preciso ensinar a pescar em vez de dar o peixe”, e então todos percebem que o orador nunca pescou uma bola à beira de um lago. a hipocrisia é a mãe de todas as violências. a violência é o egoísmo, o imperialismo financeiro, o racismo, o nazismo, a cólera e tudo que se vê facilmente num telejornal. os mortos pela fome, pela miséria, pelo abandono, enquanto há quem espere o próximo feriado, o recesso de natal e um feliz ano nenhum, feliz ano nenhum, nenhum.

Thursday, August 10, 2017

esmolas d'alma

república federativa infestada
de pátria amada
todos juntos vamos! 
a câmara de gás nos espera

estendemos nossas mãos 
mendigas
e pedimos o que nos resta
porque deus ajuda e muito

o amor não protege o relento
a miséria
a morte lenta nas calçadas
feito o desabrigo que é

que fim levou a nossa compaixão? 

pobres diabos com pentes de balas
garotos loucos no voo das morte

meninas tão entorpecidas, o mal
a exploração e a vã indiferença

onde mora a nossa piedade, senhor? 

estamos todos mortos, mortos
decompostos em vida, fétidos
a carne podre da hipocrisia covarde
ou a verborragia anêmica de luz

estamos imersos no mar do caos
somos corações petrificados, nus
caminhamos pela cidade perdida
aluga-se um punhado de amizade

@pauloandel 

Tuesday, August 08, 2017

poema do otimismo

eu e meu caos
a desgraça, o desabamento
os famintos nunca foram tão sofridos
nunca foram tão humilhados
nós somos a merda, o esgoto
a legião dos desprezados
e há quem ouça falar em futuro
- você conhece matemática?

eu e nossa dor, nossa bosta
no continente dos abandonados
cada um é sua própria sorte
um lance, um tiro, a morte
o voo fascinante do suicídio
será condenado pelos hipócritas
que mandam no povo, céus

nós e nosso ódio esparramado
somos campeões do mundo da cólera
ou merda nenhuma na verdade
afinal, de que vale uma rastejante subcelebridade?

nós somos o povo, a prole, a gang da gare
e podemos vender nosso esforço
nossos corpos, a força física
somos cavalinhos bem comportados
ou cordeiros mansos
a morte não existe, fica o sofrimento
a se arrastar por infernos e céus
nós somos o povo, a bosta desprezível
e os bandidos riem da nossa tristeza
ao mesmo tempo em que nunca fomos
nunca fomos tão estúpidos
e egoístas e desinformados
num dia de sol tão bonito
os velórios também existem
- e são fartos

@pauloandel