Thursday, August 28, 2014

a nova bossa nova

a nova bossa nova ergue-se frente às grandes corporações
os grandes esqueletos concretos
salas aconchegantes e atendentes refinadas
a pujança econômica mas poucos livros
de verdade:
aqueles que não são céu ou inferno somente nem noite e dia
que não são bons ou maus
mas apenas reflexo
livros de amor, poesia e vida
poucos livros são poucos horizontes livres
a nova bossa nova precisa das mãos de deus e um coração mendigo
que se alimente das pequeninas coisas
a pequena fé, solidariedade
ver que o outro pode ser bom e livre
e que não somos nada
diante de nossas monumentais criações

@pauloandel

Sunday, August 24, 2014

desejo

você pensa no desejo
meu da tua carne bela
em plena madrugada? pensa?
e quando
deita sente no ventre
a minha língua quente
a te namorar sem fim? sente?
quando se toca, lembra
que queria a minha mão
te alisando, o dorso, o colo? toca?
você pensa no que me instiga
excita, atiça
a tua pele nua, cobiçada
roçando em meus calores
até sermos um só, teu, tua

@pauloandel

Sunday, August 17, 2014

quando você quiser amor


quando você quiser amor
e se lembrar de mim
e me chamar
serei muito mais do que mensagens
de bolso
recados e frases:
posso fazer de mim mesmo
o sol fosco que te banhe
ou mesmo a noite incontável
de luar
quando você quiser amor
e me falar
posso ser mais que desencontro
passatempo barato
passeios perto de vitrines
muito do muito mais
quando você quiser amor
faço-me corpo e beijo e gosto
nos toques mais profundos
nos carinhos mais excitantes
e será difícil crer que alguém
não saia extenuado
quando você quiser amor, não permaneça à beira do mar:
vamos mergulhar um na outra
e comprovar tudo aquilo
que já sentimos antes, agora e sempre
mas não nos permitimos

@pauloandel

a feiúra da alma atormentada

era arrogante a ponto de parecer estupidez que as veias fizessem o sangue de seu corpo circular. um inútil trabalho de abastecimento visando alimentar um corpo de alma fútil, deslumbrada com a ingenuidade das palavras difíceis mas ocas, o peito estufado a sugerir a imponência de um corpo amorfo em plena harmonia com um rosto horrível, repugnante e fiel em sorrisos aos rococós travestidos de sofisticação, tudo para esconder a dor que sentia diante do espelho.

era arrogante a ponto de ser incapaz do exercício das pequenas coisas, usando a intolerância, o sarcasmo e o deboche como principais armas de auto afirmação, em vez do progresso próprio, da capacidade de realizações, da construção de um caminho confortável e harmonioso. a falsa intelectualidade que ostentava, fruto de orelhas de livro em vez de miolos, não enganava qualquer observador dotado de argúcia.

era arrogante, sem talento, com as mãos no estandarte da feiúra, carente de brilho próprio, mas dispunha-se a ofender o próximo pela incapacidade de enxergar as próprias limitações, tão evidentes a qualquer um.

no fim das contas, era de uma tristeza infinita: não há pessoa capaz de enganar a si mesma, exceto os loucos, os psicopatas. nem a esse extremo chegava: até para se ter os piores predicados, a mediocridade não basta.

a feiúra própria lhe arreganhava as vísceras. mas não apenas a de um rosto horrível, que poderia ser menos horrível dependendo de quem visse; como atenuar uma alma horripilante? não há dinheiro que pague. não há fama ou notoriedade que conforte. 

@pauloandel

Saturday, August 16, 2014

canções para aprender e cantar

Enquanto ouvia agruras e risos de certa morena simpática e amiga num botequim familiar e vazio, coisa de poucas horas, espiava a foto de outra mulher linda e ausente, intensa e presente de alguma forma. Entre garrafas de Malzbier, nada fazia sentido e, ao mesmo tempo, tudo parecia tão conectado e lógico. Você ouve ao longe uma mulher que viveu o amor em vão. Você ouve a indiferença travestida de romance. Alguém carrega o celular na tomada perto do caixa só para não perder de vista mensagens desejosas. Estou cansado demais e preciso de uma cerveja. Sono, cansaço, tesão incubado, namoro de trem e a mesa ao lado se comove na prosa a respeito de duas belíssimas bailarinas à ribalta. Futebol não há, os bares morrem no frio de um sábado à noite. Nenhum dos admiráveis bebuns do balcão está de plantão. Frio, frio, os velhos botequins não merecem o frio de Agosto, nem o silêncio do Robertão, falecido quando menos se esperava. ENTÃO levanto de minha mesa solitária, pago a conta, caminho a largos passos em direção de casa, tomo o elevador por vários andares, ligo a televisão que faz cinema com o santo guerreiro contra o dragão da maldade. Grandes atores na tela abençoada. Estou sozinho e penso em pequenas devassidões, múltiplas. O amor é uma solidão fascinante. O mundo é solitário e defeituoso com suas cicatrizes, suas veias doloridas e sempre alguém estará do lado de quem vai vencer, fingindo comemorar a vitória do outro. O amor, o desencanto e a perda no passo delicado de duas bailarinas, enquanto o trem da história está paralisado na gare imaginária da Central do Brazyl. O Brasil não conhece o Brasil. O resto é uma enorme desimportância

@pauloandel.

Thursday, August 14, 2014

poema em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.


Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)


Tuesday, August 12, 2014

Monday, August 11, 2014

gosto

gosto meu
sobre teu gosto
meu
corpo teu gozo
meu
teu rosto lindo
gozo meu
teu gosto liso
teu
o sexo úmido
e a cada sempre eu
quero teu gosto
o meu
corpo quer gosto
teu
o prazer todo
eu deitado
num beijo teu
lambendo o teu
corpo incandescente
rijo e molhado
teu
par de seios
meus
que acaricio
hoje eu deitado
só sem ter
o teu calor aqui
como queria
um beijo meu
em pleno ventre teu
você tão lisa e eu
te arrepiando
o sexo meu tão quente
num beijo teu
e o mundo gira
o gosto teu que penso
e quero ter
e posso e gosto
ter a tua vida
lamber teu, te penetrar
ao fim e tremular-te em vez
a cada beijo

@pauloandel


os garotos do 238

Peguei o 238 na Mem de Sá e espiei não somente o movimento das ruas mas também o dos passageiros. Gente trabalhadora, mulheres bonitas, vovôs, jovens yuppies e perto da porta, quatro estudantes do Cefet - inevitável lembrar de Elika. Foi uma viagem rápida, talvez uns vinte minutos, mas que me fez navegar no tempo. Um dia proveitoso e até prazeroso em alguns sentidos: rir bastante, olhar o passado com serenidade, recordar poesias, algumas leves promessas eróticas, contas a pagar e receber. Voltando ao ônibus, os garotos riam e brincavam, enquanto falavam de seus pequenos medos: a troca de matérias, a necessidade de estagiar, algumas aulas desimportantes, outras essenciais. As gatonas da sala, a incerteza do futuro. Os quatro de mochilas, camisetas, jeans e tênis. Um falava do longo caminho de volta para Belford Roxo, o outro sonhava com uma boa janta, o terceiro falava dos seus temores com Estatística - do mesmo jeito que certa bela mulher me disse - e o quarto, o mais grandão e tímido, alternava risos contidos e pequenos silêncios. Calado, pensei que, há muitos anos, quando eu tinha o futuro e a esperança nas mãos, fui exatamente um deles, podia ser perfeitamente o quinto daquela turma. Senti saudades, ainda que fale com alguns daqueles amigos da faculdade até hoje. Na verdade, também hoje eu ainda sonho como eles, mas sem o futuro que só a juventude proporciona. Quando chegaram no Cefet e saltaram, foi como se eu descesse com eles, fosse até o hall da faculdade e ganhasse o beijo de alguma amiga bonita. Dali fui até o Shopping Tijuca pensando naqueles quatro jovens lutadores em busca de sonhos - eu fui um deles, acertei, errei muito e talvez não mudasse uma vírgula se pudesse voltar no tempo - a vida é para ser vivida e não trocada só porque não foi perfeita. Logo passei pelo querido Maracanã, a avenida feito uma artéria de puro sangue, carros para todos os lados, meu pensamento apontando para onde não devia. Saltei do 238 e imediatamente comprei um cachorro quente pra ainda me sentir um jovem estudante. A seguir, já no centro de compras, entrei na Saraiva e comprei o primeiro cd dos Racionais, com os grandes raps do tempo em que eu era mochila, camiseta, sonho e esperança. Quando caminhei para meu trabalho de estúdio, espiei a Saens Peña e revi na alma os cinemas do fim dos anos 80: éramos jovens demais, víamos filmes entre as aulas, um excelente pretexto para beijar as garotas. O poeta Cazuza foi implacável: "eu vejo o futuro repetir o passado, eu vejo um museu de grandes novidades, o tempo não para". Os museus são vida. Horas depois, já deitado em meu quarto, a televisão falando desimportâncias e servindo de companheira, o futuro tão incerto, pensei em quem não devia mas tanto gosto, houve quem me chamasse para o bate papo virtual e eu imaginei como foi o fim de noite daqueles meninos com todo o futuro nas vísceras: um jantar, um banho, uma noite de sono, o sonho de um dia melhor. Quis ser de novo como eles. Na verdade, ainda sou. Comprovadamente, nunca deixei de ser. Provavelmente, sou um eterno estrangeiro de meu tempo e espaço. Sempre foi assim; só me bastava uma vida melhor para as pessoas. Tomara que eles descansem bem, continuem amigos e driblem as intempéries deste mundo injusto e egoísta. Sou um deles e nunca deixarei de ser. Entretanto, Robin Williams tinha que morrer logo agora? Ele era uma estrela nas telas tijucanas que eu tanto admirava dia desses. 

@pauloandel

Thursday, August 07, 2014

miséria


a miséria de braços abertos
e sorriso largo nas calçadas
nas grandes avenidas iluminadas
comove, entorpece e aflige:
nas grandes cabeças falantes
e também nas falsas, que fingem
riqueza de pensamento em vão
- a miséria do argumento - a miséria da solidão - o fracasso da sociedade
decadentes roqueiros reacionários
são estandartes da miséria
herdeiros arrogantes de velhas capitanias
são brisa firme da miséria
a miséria da dicotomia rasteira
é maior do que as infinitas luzinhas
dos barracos de sempre
risíveis caçadores de comunistas, tão indiferentes
aos milionários donos das palavras
de deus
aos respeitáveis sobrenomes tradicionais:
nós somos silvas, pereiras, sousas
e também temos outros nomes estrangeiros
a miséria é o desprezo, a indiferença
a ganância
intelectuais de orelhas de livros
são tatuagens da miséria
eu não estou isento:
também sou um miserável
mas as minhas esmolas d'alma
não vem das manchetes mofadas
nem dos velhos discursos piegas
sou velho a ponto de não me iludir
com eternos oportunismos
mas novo o suficiente para sonhar
com o fim das misérias
e dos verdadeiros miseráveis:
isso não é dinheiro
mas poder e amar

@pauloandel

Tuesday, August 05, 2014

o rosto do brasil

poetas de calçada tentam em vão
descrever o rosto do Brasil
neste inverno de dias
estranhos
o céu mendigo das marquises
enquanto vaidades ocas
aconchegam-se em escritórios
presidentes de porra nenhuma
assistentes de porra louca
assessores de franca inutilidade
qual é a cor do rosto do Brasil?
serão suas rugas idade ou sofrimento?
o rosto de um amor perdido
ou das perdas sem volta
eu queria ver o rosto do Brasil
a tez, as curvas, o ventre livre
mas tudo é muito distante
poetas de calçada namoram as conquistas do país
eu sinto fome, sono e tristeza
mas amanhã será dia novo
passageiros de nós mesmos
enquanto o samba e o amor
ficam de mãos dadas e dedicadas:
aqui, somos distantes demais

@pauloandel

Friday, August 01, 2014

o país distante


o meu país é o sonho
distante
um suspiro estrangeiro
entre ruas
miséria
tristeza
e boas pessoas
também pessoas ruins demais:
sempre a minoria
o meu país tão longe
perdido em interesses
mesquinhos
egoísmo, covardia
súplicas de fé
e pequenas esmolas
o meu país solitário
com suas grandes terras e estradas
intermináveis
os valentes nordestinos nos canteiros de obras
suburbanos em trens apinhados
o meu país não tem rancores
mas uma injustiça enorme
em cadernos amarrotados
cemitérios clandestinos
leitos descuidados
e garotos indo e vindo, zumbis
intoxicados
o país que grita gol!
o país que esculpe o samba
e tanta gente boa
sem perceber os metaesquemas
meu país: cor
poema sem final feliz
vida a escorrer em valões
o sorriso de uma garotinha
vendendo chicletes no sinal
o sorriso de uma criança
em dias e noites de escravidão
o meu país
num humilde prato de comida
caseira

@pauloandel