Saturday, June 28, 2014

outro longe

feito um mistério
o que cerca o nosso
encanto:
um coração distante
namorando ao longe
outro coração
nenhuma certeza
e a sensação
de que o longe devia
estar aqui agora -
a ausência não mede
romance
as lágrimas são risos
doutra
história

@pauloandel

Thursday, June 26, 2014

granel

esta selva de pedra com grandes edifícios e pequenos personagens
os vis, os vilões, os pequenos burgueses, a escrotidão
as pequenas maldições que me cercam
a conta maldita, a sorte, a fome
a estupidez maldita
as lindas putas maldições
meu coração padecendo
e os torcedores deveras ocupados:
esta é a nossa copa do mundo
e algum amor me corrói
a febre maldita, os cantos malditos, os heróis da indiferença
vamos celebrar o sonho da cidade
nossas pequenas maldições
a opressão urbana, os preconceitos vivos, o egoísmo a granel
doses industriais de fel
e os estúpidos serão felizes
quando chegar a próxima
grande liquidação:
o inferno é o longe do fim

@pauloandel

o idiota num tratado geral

o perfeito idiota
con(funde)
elegância com empáfia
embaralha
literatura com datilografia

indistingue
poesia de verborragia - cita os trechos dos livros que não leu:

bastaram-lhe as orelhas - precisa fingir a tola sapiência - 
troca os pés pelas mãos porque não sabe
que menos e bem menos é mais -
nobre literato dos falsos cognatos, bacharel das hipérboles
ah, divino bardo das ciências curtas
e por demais apagadas:
por mais que vociferes
e ofereças teu ódio primitivo

jamais esconderás dos atentos
a tua verdadeira identidade - um idiota -
supremo e absoluto idiota -
deitado em berço ao nojo da arrogância
numa rede social qualquer, sempre fútil

sempre com mil pontos de exclamação, mil interrogações, mas nenhuma certeza útil 
ou dilema
um inevitável e contundente
idiota
idiota
idiota!
cuja estupidez nenhuma tabuada
há de calcular

granada sem pino da ignorância
coquetel molotov da imbecilidade!
ante a tua fétida presença

que se faz apoteose da feíura
qualquer boçal regenera-se: 

 - sou vulgar mas ali está o perfeito idiota! os ignorantes podem permanecer à vontade! 
sintam-se em casa!

@pauloandel

Wednesday, June 25, 2014

erotique (fullgás)

ah, boca - eu, a minha boca
e o teu líquido
cais em maré alta e cena firme
eu e o beijo quente de relance
eu e um romance no teu ventre
miados soltos, luar
ah, corpo - eu, a minha boca
e o teu corpo
corpo que se enrosca empolgante
eu e uma língua no teu corpo
santo e profano, tão devasso
um diamante a brilhar
ah, doce - eu, aquele doce
no teu corpo
saliva encontrando outra saliva
peitos e coxas em paz lunar
- corpo tremulando de desejo - língua que provoca outro líquido - chocolate no paladar - branco preto luso!
oh, carne!
carne do teu corpo que desejo
carne sem desculpas e artifícios
doce, quente, tão sincera e corajosa -
longe dos mandamentos imprecisos -
tenra, magra, farta, sempre alerta
rija, crua, nua, generosa - loucos temos muito a vagar
carne enrijecida de volúpia
seios saltitando na luxúria
a vida, o hoje, o gozo fullgás*

@pauloandel

*"Fullgás", Marina Lima & Antônio Cícero, 1982

Tuesday, June 24, 2014

Outros Rios







Meu Rio
perto da favela do Muquiço
eu menino já entendia isso
um gosto de Sustical
balé no Municipal
Quintino:
um coreto
entrevisto do passar do trem
nós nos lembramos bem
baianos, paraenses e pernambucanos:
ar morno pardo parado
mar pérola
verde onda de cetim frio
Meu Rio
longe da favela do Muquiço
tudo no meu coração
esperava o bom do som: João
Tom Jobim
traçou por fim
por sobre mim
teu monte-céu
teu próprio deus
cidade
vista do outro lado da baía
de ouro e fogo no findar do dia
nas tardes daquele então
te amei no meu coração
te amo
em silêncio
daqui do Saco de São Francisco
eu cobiçava o risco
da vida
nesses prédios todos, nessas ruas
rapazes maus, moças nuas
o teu carnaval
é um vapor luzidio
e eu rio
dentro da favela do Muquiço
Mangueira no coração
Guadalupe em mim é Fundação
solidão
Maracanã
samba-canção
sem pai nem mãe
sem nada meu
Meu Rio

Caetano Veloso

@pauloandel

Sunday, June 15, 2014

o romântico blues dos miseráveis

as trilhas urbanas estão cheias de miseráveis como se fosse o sangue venoso em processo
a miséria da alma
a miséria da falsa generosidade
ou a apoteose da nossa hipocrisia empoeirada

os miseráveis não são exatamente os sem casa, comida ou futuro
estão engravatados nas grandes corporações
ou subornando, sonegando, fustigando indiferença
chacoalhando suas joias em tribunas de honra
onde a honra é tão pequena

os miseráveis
também moram nos sonhos
dos rebeldes sem causa do Jardim Botânico ou da Gávea
e dos revolucionários que ainda revolucionaram nada
- outros são Marighella - o inimigo dorme ao lado - a covardia tem casa e comida - o pecado é capital -
senhores miseráveis
em busca da perfeição que não existe
amores eternos entre duas estações - a contradição entre o verso e a vivência - queremos mais pecados

a miserável podre moralista no discurso enfeitiçada
com bacanais e outras putarias
o miserável que quebra igrejas como se fossem bancos
o miserável que chutou a santa!
vamos perseguir os ateus!
a miséria reside no fel do egoísmo, na truculência

e no calor inexato das contradições - hoje é domingo - vamos buscar o perdão de deus! - vamos viver nossos feriados lambendo vitrines, vomitando pastiches e fazendo da utopia nosso melhor entorpecente
- riquezas são diferentes!*
- a morte não causa mais espanto!*
os miseráveis poem culpa em futebol e carnaval
o óbvio é repetir as manchetes que alguém pagou para lucrar e alguém pagou para ler

os miseráveis não eram os índios mortos, os favelados estuprados, nem estudantes torturados pela ditadura que hoje faz-se pensamento liberal
os miseráveis não são os que esticam braços cansados em busca de esmola vil
os miseráveis não são os esmagados nos trens no fim do expediente de uma grande capital

quero cantar sobre os verdadeiros miseráveis: os que pensam ter descoberto os caminhos do mundo
ou que tenham as opiniões pasteurizadas sobre tudo - os que apontem as soluções certas porque nunca resolveram problemas - os miseráveis que dão de ombros porque não inventaram o mundo e não tem compromisso com isso -
os miseráveis que trocam de calçada ao avistar um pedinte
ou que desfraldam seus diplomas conseguido com o dinheiro dos pais - há quem chame de mérito

quero cantar contra os miseráveis que não declaram seu nojo de quem nasceu negro
ou pobre ou suburbano
caipira talvez
quero cantar para os que são trezentos, trezentos e cincoenta*
e não apenas os que se envaidecem diante do próprio bom senso - na verdade a ausência
os miseráveis que pertencem à academia brasileira de letras longe dos livros
e sopradas na tv a cabo
deus, buda, alá, os orixás, todos os que são alguém vão nos redimir:
enquanto isso somos gado off price sem a elegância do pasto
a esperança dos campos verdes
as ruas estão cheias de miseráveis
com violência, desfaçatez, sede de poder e ganância
coisas que armani não conserta

penso em um poeta que pediu a deus para que salvasse a américa
e isso queria dizer de nossas almas indigestas:
dê ouro preto a quem só vê miami em tom tão brega
ou candeia contra o showbiz
os miseráveis jamais entenderam o canto cínico de gilmour: "money! it's a hit!"
e nunca vão entender
o lado escuro da lua
o lado escuro
da lua que recita o blues deles, tão miseráveis
miseráveis
humanos feito eu

@pauloandel

*citações de "miséria", titãs, e "eu sou 300", mário de andrade

Thursday, June 05, 2014

o dorso do mundo


eu não consigo entender o mundo
mas tento escutá-lo
ou ler seus poemas breves
os cochichos
- fotografias da alma
- tons de canções que acalmam

eu não consigo avançar no mundo
cheio de mares de rancor
a gente que detesta gente
na solidão das multidões
vamos nos despir da hipocrisia!
- um soco poderoso do queixo duro e covarde da hipocrisia!

os boçais sentem-se à vontade diante da miséria do mundo
e escarram modernidade pois o ranço colonialista incomoda-lhes
ao ventre vil

eu não consigo abraçar o mundo
mas beijo-lhe a nuca, o ventre
os rijos bicos dos seios
e namoro com fúria juvenil
até que goze e torne-se
planeta - e só o que importa
num momento de prazer
efêmero

as calçadas do mundo repletas de sofrimento
grandes corporações a serviço de pequenos interesses
deslumbrados, recalcados

e tão estupefatos testemunhamos
que o caos do caos é pouco
diante da violência maior:
a distância
a indiferença

o céu mais belo dos mortais
e minha tristeza
numa noite de junho:
estou longe
longe demais
do mundo - meu sonho à toa
desmaiado em pobres lençóis
de silêncio
profundo

@pauloandel