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Monday, May 22, 2006

Réquiem para o inimigo


Ouvia um disco de orquestra e admirava o cartão postal que se desenhava em sua janela, numa tardinha de céu brilhante aos pés do Cristo Redentor: ao largo, uma jovem babá cuidava de um bebê feliz, homens de bem faziam trovas de verbo no bar ameno de esquina, uma mulher doce e de melenas alouradas passeava em sua bicicleta e, incrivelmente para os dias de hoje, meninos jogavam botão na calçada. Eis que tocou o telefone, e a voz embargada tinha algo de soturno a dizer:

"- Ele morreu, amigo. Sei de suas desavenças, mas era preciso que você soubesse mesmo vocês sendo inimigos. Ele morreu há cerca de duas horas; não estava doente e parece-me ter sido algum mal fulminante. De qualquer forma, quando tiver notícias sobre o funeral eu lhe passo. Congratulações e uma boa tarde."

Dizem que mau presságio em telefone só vem de madrugada e você sabe que não é bem assim. Ele também: embora fossem inimigos de morte, ficou em silêncio de limbo durante alguns instantes e interrompeu o bom andamento da orquestra na vitrola eletrônica. Pensou no inimigo e, mais ainda, no tempo em que o julgava ser seu amigo. Afinal, conviveram juntos por várias temporadas, atravessaram mares e tinham sempre suas imagens associadas por muitos da comunidade. É certo que tinham divergências e pensamentos diferentes, mas tornaram-se próximos talvez pelo bom-humor, pela velocidade de raciocínio, pela vizinhança e por mais uma série de características que permitia a terceiros concluírem, com rigor, que tinham muito mais semelhanças do que talvez pudessem gostar. Lideraram viagens, foram a casas de tolerância, duelaram garbosamente em tabernas, contestaram gêneros musicais e partidos políticos, viram os sóis de Ipanema e - há quem ainda diga - dividiram ao menos uma vez as mesmas mulheres, em carreira solo. Não se alinhavam, enfim, mas estavam perto. Certo dia brigaram para sempre e alguém desconfiou de traição da suposta amizade, mas o motivo verdadeiro era um punhado de tostões. Tostões que não resolveriam a vida de um ser humano, tostões que não permitiriam entender o pôr-do-sol ao lado da doce e desejada mulher amada, tostões que não pagariam muitas contas nas tabernas onde o chope dourado da felicidade é farto. Foram adversários fatais para sempre, e por motivo torpe. Fizeram os piores papéis que os homens podem prestar-se: trocaram ameaças, apontaram defeitos um do outro pela primeira vez, praticaram baixeza por moedas baixas. Nunca mais se viram e, a partir da despedida de instantes antes, a reconciliação tornara-se impossível.

Devolveu a música para a sala. Sentou-se e olhou para o teto brilhante. O inimigo veio-lhe à tona: parecia estar no sofá, na mesa de jacarandá ou na varandinha, dizendo velhas bravatas, rindo e celebrando um brinde. Só que não estava, e isso lhe trouxe um momento de grande desconforto: a morte em si tinha deixado um triste; contudo, mais ainda foi a certeza do nunca mais, a constatação de que as armas nunca mais seriam baixadas mesmo tendo a guerra terminado. Outra dor que lhe veio foi ter-se arrependido do que não disse, pois era - e é - pessoa de altivez consagrada, donde deveria ter partido uma reflexão mais profunda para que, se não voltassem à suposta amizade dos tempos de outrora, pelo menos jogassem a belicosidade no mar salgado. Num suspiro, percebeu o quanto é tola e rude a falta de fraternidade que, ali, fazia-o de alvo doloroso. Por que briga, por que ódio, por que desamor? A vida é mais do que isso, muito mais e sempre.

Caminhou lentamente para a varanda, e reviu os trovadores do bar bem como os meninos do jogo de botão. Admirou outra menina bonita que passava ostentando sua beleza estrangeira. Silenciou-se ao som do piano que surgia do disco, em contrapartida à orquestra de antes. Quis que sua mulher amada adentrasse o apartamento e lhe desse um beijo como antes, e ela não o faria porque dorme noutro lar que não lhe pertence. Virou-se para o lado e viu na outra esquina sinais de mocidade, feito a que tinha nos tempos em que o inimigo agora morto era apenas um rapaz de bem.
Pensou nas suas certezas e, sob a desolação dos constrangidos, atestou para si próprio um lema triste: de certo por ali, apenas o nunca mais.

2 comments:

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Anonymous said...

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